terça-feira, 27 de março de 2012

28. Mélvio

Isso está começando a ter a minha cara. Em toda sua glória viscosa, a minha cara. Chumaço de algodão coberto de piche, arame entremeando. A estrutura toda, a cartilagem onipresente, arame. Enquanto o coração bombeia o óleo bom e o estragado. As articulações madeira rangente e os olhos esferas vítreas carregadas de acetona. As luzes se refratam, cores se difundem, misturam-se, e figuras estranhas, cheirando a esmalte, alcançam a superfície cristalina do cérebro. As mãos de piche também, impregnando tudo e por tudo se deixando impregnar. Muita história nessas mãos. Os papéis todos borrados, todos ilegíveis. As primeiras peças plástico-biológico-autobiográficas.
       Se cartilagem arame, ossos barras de ouro. Os ossos a coisa mais valiosa portanto. Chacoalham-se todos dentro do saco que isso é, seu deslocamento invariavelmente limitado por barras de ouro e arames. Mas a margem para deslocamento é grande. Os dentes de ouro também, é claro, cedendo gentilmente para frente, para trás, para a direita ou para a esquerda (só não pode é ficar parado) ao morder a língua de trapo.
       Estaria menos mal se não fosse tão ruim. Que mais? Nada disso age, apenas reage. O toque vem de fora, a comida por um tubo, a palavra só responde, a luz turva das coisas é recebida com um impulso nervoso post-mortem e quase instantaneamente descartada. Essa relação de passividade diante da unilateralidade fugaz da luz, no entanto, não é própria dele, que morre; trata-se antes de um problema com toda a espécie humana, em cujas fileiras jamais quis militar. Na ânsia por agir, às vezes reage exageradamente a fracos estímulos, transformando pássaros em dragões e chutando a canela de senhoras que só lhe querem o bem.
       Sente cheiros. Esmalte. Urina. Pipoca. Logo tem lembranças, necessidades fisiológicas urgentes, vontade de absorver o milho jogado aos pombos com os poros pelos quais respiram os membros de piche. Chora sempre que vê filmes, de um choro indiferente ao objeto, alheio a si mesmo. É mais um lacrimejar.
       Mas o normal é que não reaja. Oscila entre inércia total e explosão cinética. Come caramujos. Bebe guaraná. Cheira a mofo. Guarda semelhança com alguém. Perdeu as chaves. Cresceu e apareceu, depois lançou tendência. Dorme sentado. Felizmente perdeu o hábito de dormir sentado. Agora dorme de pé. A sua mão dorme também, sentada. Mas caiu. Piche por tudo. Um problema. O chefe ficou bravo. Trabalha numa pastelaria e todos os dias entrega os pastéis trocados, cheios de piche. O chefe mandou embora. Esteve algum tempo na prisão por beijar uma freira. O fato é que se esbarraram no sacolejo do ônibus, os lábios se colaram, fazer o quê. Até hoje Solange pronuncia o seu nome entre suspiros:

sábado, 24 de março de 2012

27. Quando eu te vejo…

A minha alimentação melhora toda vez que toco em você. Respiro mais rápido, mais devagar. Os meus olhos estalam e bato a cabeça contra o muro, o dia do outro lado. Nada impede que esteja em outro lugar, fazendo outra coisa. Quando eu te vejo…
       Quando eu te vejo a vaca muge. A luz que vem do outro lado passa pelas frestas. Não se sabe qual a fonte, quem a fonte. Sobre a sensação térmica não há muito a dizer.
       A minha alimentação melhora toda vez que toco em você. Respiro mais rápido, mais devagar. Os degraus parecem ser amplos mas subir é fácil. Os pés deslizam para cima. Um galo canta e o guarda acorda sobressaltado. Nada impede que esteja num cubo de arestas irregulares.
       Quando estou com você a sensação térmica é ótima. A temperatura real—eles chamam ela assim—escapa aos limites da faixa dentro da qual seria desejável conduzir o experimento. Não seria possível realizá-lo hoje, de todo modo, uma vez que os macacos estão deprimidos nos seus galhos.
       Os meus olhos estalam e bato a cabeça contra o muro, o dia do outro lado. Aí o sol, fonte luminosa primária, patrocinador de toda vida na Terra, explode.

segunda-feira, 19 de março de 2012

26. Vozes

São milhares de vozes falando ao mesmo tempo, cada qual com sua clareza específica ou obscuridade específica, uma dissonância de fraseados produzida no escuro, possivelmente pelo escuro. Porquanto é impossível enxergar, a materialidade dos falantes é incerta. Isso devido a isso e outras coisas. Pode ser portanto que não falem, que não existam. No entanto o fato inegável das vozes.
       A bem dizer não são necessariamente vozes. Não é nada conclusivo. Há conceitos que se sustentam em forma abstrata na autografia (instantânea, presumida) em suporte (incerto) ou no estalar dos lábios ou de apenas um lábio que se estala sozinho. Chamaremos de voz, então, essa coisa que sugere outra e que pode ser outra.
       A interpretação das vozes depende do que se considera ser seu fim e varia de acordo com o observador e seu humor no momento da observação, possivelmente de acordo com a posição em que se encontra, sua fome, sua sensibilidade em relação à sonoridade das palavras ou sua capacidade para a contemplação de conceitos desencarnados. Duas correntes interpretativas majoritárias.
       Segundo a primeira é o fim das vozes informar e produzir, em escala sem antecedentes, qualquer coisa digna de ser produzida que possa ser produzida por vozes, pelo que as vozes (os “donos” delas) se esforçam, conscientemente ou não, decerto que não. Esforçar-se contudo inútil. À vontade de intuir daí uma impossibilidade absoluta de alcançar o resultado sobrevém um sacolejar, um soluço, depois calamos. Não há vontade que não possa ser suplantada pela vontade de ir ao banheiro.
       A segunda corrente interpretativa tende a ver nas vozes um mero instrumento para espalhar o amor por gatinhos, fomentar a criação de memes e consagrar vídeos engraçados/politizados/aleatórios do YouTube. 

25. A filha diz

Ai mãe que tá doendo a minha perna. Quê? Quê? Quieta. Só pra tua fuça que eu não tenho coragem. Vai ver só, espera. Espera só, sentada. A mãe espera, dentro da sala, as cortinas e tudo. Manda uma carta pra filha. Quê? Quê? Você foi boa contudo não é mais, a nossa relação acaba aqui. Desgraça! A filha louca, Quê? Quê? Vrumm do secador, todos os dias vrummm do secador e blábláblá da tevê o dia inteiro, sem parar nem pra dormir. O diabo da tevê vai engolir a casa. Mãe roga por nós que o sinal tá ruim, tá doendo a minha perna. A imagem da tevê dispondo os pixels em quadrados de quatro centímetros quadrados. Fweee, Quê? Qué isso? E de manhã bem cedinho o namorico de portão degringola numa cena de cortiço. Ai amor não fala assim, ai amor você sabe que não é isso, ai amor pára de chorar. O tempo todo amor, o tempo todo a tevê ligada. Os momentos em que estão separadas são momentos de psicose agravada. Mãe você não vai me levar hoje? Depois em tom de ameaça. Não vai mesmo me levar hoje? Então tá bom vai ver só, espera. Espera. A mãe se tranca na cozinha e prepara um coquetel de barbitúricos. Joga tudo pelo ralo da pia e chora. Quê? Que foi que tá chorando? Liga a luz e o microondas e fica atordoada com a luz do dia. Vira pro outro lado pra não ver a luz do dia e lá a geladeira cheia de lixo. Pois eu digo o mesmo, só lixo aqui. A filha sai de carro. Volta no meio da madrugada e liga a tevê e dorme. Colocam ela de ponta-cabeça. Dá na mesma, ronca, espirra, continua dormindo. Tá olhando o quê? A mãe vira a cara e diz que vai embora. A filha faz que não liga. O portão abre e a mãe vai embora. Volta no meio da madrugada e liga o microondas e a filha aparece e as duas choram. Ai mãe que minha garganta tá doendo. No celular uns gritos e mensagens apitando. Elas só pensam: deixa. Nunca mais se falam até o dia seguinte, que a mãe vai buscar. No caminho alguém não entende alguma coisa, Quê? Quê? O carro tombado, a luz sai do peito. Na ambulância, as duas conversam. Quando foi que aconteceu aquilo outro dia que fez barulho e quem comeu a minha comida. O que será que aconteceu com essa ou aquela pessoa. Por onde anda o meu cachorro. De volta à casa as duas enfaixadas ligam a tevê e o microondas, derretem queijo, sentam, comem, dormem.