terça-feira, 12 de março de 2013
sexta-feira, 1 de março de 2013
60. Sete cabeças
Garoava
fraco naquele lugar àquela hora. Dei com um caminho em ziguezague ladeado por
arbustos podados em formatos de animais fofos, um caminho de pedras lisas
porque molhadas, e segui por ele, pensando mormente em comida. Ao final do
caminho encontrei um barraco que se sustentava a partir de duas roldanas
encravadas em árvores tão grandes e expressivas que me fizeram pensar em uma
mansão gótica, embora não houvesse, naquele lugar, àquela hora, nenhuma mansão,
e o clima fosse bom para a região. Era verão, o prelúdio da chuva forte duraria
poucos minutos e logo o céu desabaria e tudo estaria escaldando sob o sol outra
vez. Normal. As árvores não sabiam disso porque eram árvores, e o que mais
dizer sobre isso, lamento, é um mistério para mim.
Entrei no barraco porque encontrei uma abertura
e não tinha nada melhor para fazer.
Eu raramente tenho algo melhor para fazer.
Acabo entrando em casas e carros de desconhecidos, comprando utensílios cuja
função me escapa, vagando a esmo por ruas de terrenos baldios em subúrbios
ensolarados com um boné amarelo… Não se trata de uma paixão pelo desconhecido,
pois não sei nem sequer quem ele é. Provavelmente um mendigo cujo rosto a gente
vê, pareidolia pura, subitamente destacado das dobras da jaqueta de uma mulher
azul, ela vai andando e dobra uma esquina e desaparece. Assim é que desaparecem
as pessoas, tanto aquelas que conhecemos bem como os mendigos, a jaqueta
sumida, o pouco que tinha a dizer (sendo ilusão) ecoa ainda por alguns dias na
cabeça da gente e depois some também.
Não tenho tampouco o senso do desconhecido, que
se manifesta geralmente em outras pessoas, tenho observado, diante de situações
cujos traços comuns me escapam, não se trata de ver extraterrestres de repente,
tampouco de se deparar com uma ideia inédita e pretensamente revolucionária,
medo seria uma palavra mais adequada para descrever a reação das pessoas em
situações assim, ou surpresa, quem sabe susto? Por isso, quando entro, como é o
caso, em um barraco, desconhecido, suspenso por roldanas encravadas em árvores
no meio da garoa, não sei dizer exatamente o que isso quer dizer.
Outra vez entrei sem querer em um local
parecido com aquele barraco. Era um circo, pois leões enjaulados mastigavam um
homem sobre a serragem. Não havia ninguém mais para dar conta do fato. Esta é a
melhor representação dele que consegui traçar, pois os meus instrumentos—um
isqueiro, uma barra de ferro, um aparelho que emitia uma luz azul com certa
periodicidade e uma criança—revelaram-se de pouca valia. Vendi todos eles para
comprar uma caneta esferográfica, com a qual, a muito custo (estava suado),
consegui dar conta do fato mediante o traçado de uns riscos azuis no meu antebraço. É claro
que tomei alguns banhos desde então. Os riscos foram sumindo com o tempo. Suponho
que a minha pele absorveu um pouco da tinta. Talvez seja assim que eu saiba do
fato até hoje, por tê-lo ingerido pelo meu antebraço, tal como o leão ingeriu o
homem pela boca.
Gostaria de descrever o barraco por dentro.
Grande. Amarelo. Enrugado. Escuro. Escroto. Parcamente mobiliado. Trezentos e
tantos metros quadrados. Piso de madeira de lei. Amplas cozinhas. Papel de
parede com estampa de homúnculos. Alguma atividade. Não muita. Nem humana.
Comida em variedade. Comida forrando o chão de madeira de lei. Ao lado da
comida um abajur. Amizade entre comidas. Abelhas trabalhando em suas
respectivas colmeias. Quatro cantos ao todo. Colmeias grandes, bojudas, marrom.
Pouca luz. Lâmpadas esparsas. Etc. Tudo era em caixa alta.
Gostaria de descrever o barraco por dentro e
relatar o que aconteceu lá. Isso só será possível quando tiver encontrado a
minha fita VHS. Tenho um videocassete de sete cabeças e pretendo alimentá-lo
com as experiências que, uma vez ingeridas, vomitarei de bom grado, com toda a
objetividade de que for capaz.
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