sexta-feira, 1 de março de 2013

60. Sete cabeças


Garoava fraco naquele lugar àquela hora. Dei com um caminho em ziguezague ladeado por arbustos podados em formatos de animais fofos, um caminho de pedras lisas porque molhadas, e segui por ele, pensando mormente em comida. Ao final do caminho encontrei um barraco que se sustentava a partir de duas roldanas encravadas em árvores tão grandes e expressivas que me fizeram pensar em uma mansão gótica, embora não houvesse, naquele lugar, àquela hora, nenhuma mansão, e o clima fosse bom para a região. Era verão, o prelúdio da chuva forte duraria poucos minutos e logo o céu desabaria e tudo estaria escaldando sob o sol outra vez. Normal. As árvores não sabiam disso porque eram árvores, e o que mais dizer sobre isso, lamento, é um mistério para mim.

Entrei no barraco porque encontrei uma abertura e não tinha nada melhor para fazer.

Eu raramente tenho algo melhor para fazer. Acabo entrando em casas e carros de desconhecidos, comprando utensílios cuja função me escapa, vagando a esmo por ruas de terrenos baldios em subúrbios ensolarados com um boné amarelo… Não se trata de uma paixão pelo desconhecido, pois não sei nem sequer quem ele é. Provavelmente um mendigo cujo rosto a gente vê, pareidolia pura, subitamente destacado das dobras da jaqueta de uma mulher azul, ela vai andando e dobra uma esquina e desaparece. Assim é que desaparecem as pessoas, tanto aquelas que conhecemos bem como os mendigos, a jaqueta sumida, o pouco que tinha a dizer (sendo ilusão) ecoa ainda por alguns dias na cabeça da gente e depois some também.

Não tenho tampouco o senso do desconhecido, que se manifesta geralmente em outras pessoas, tenho observado, diante de situações cujos traços comuns me escapam, não se trata de ver extraterrestres de repente, tampouco de se deparar com uma ideia inédita e pretensamente revolucionária, medo seria uma palavra mais adequada para descrever a reação das pessoas em situações assim, ou surpresa, quem sabe susto? Por isso, quando entro, como é o caso, em um barraco, desconhecido, suspenso por roldanas encravadas em árvores no meio da garoa, não sei dizer exatamente o que isso quer dizer.

Outra vez entrei sem querer em um local parecido com aquele barraco. Era um circo, pois leões enjaulados mastigavam um homem sobre a serragem. Não havia ninguém mais para dar conta do fato. Esta é a melhor representação dele que consegui traçar, pois os meus instrumentos—um isqueiro, uma barra de ferro, um aparelho que emitia uma luz azul com certa periodicidade e uma criança—revelaram-se de pouca valia. Vendi todos eles para comprar uma caneta esferográfica, com a qual, a muito custo (estava suado), consegui dar conta do fato mediante o traçado de uns riscos azuis no meu antebraço. É claro que tomei alguns banhos desde então. Os riscos foram sumindo com o tempo. Suponho que a minha pele absorveu um pouco da tinta. Talvez seja assim que eu saiba do fato até hoje, por tê-lo ingerido pelo meu antebraço, tal como o leão ingeriu o homem pela boca.

Gostaria de descrever o barraco por dentro. Grande. Amarelo. Enrugado. Escuro. Escroto. Parcamente mobiliado. Trezentos e tantos metros quadrados. Piso de madeira de lei. Amplas cozinhas. Papel de parede com estampa de homúnculos. Alguma atividade. Não muita. Nem humana. Comida em variedade. Comida forrando o chão de madeira de lei. Ao lado da comida um abajur. Amizade entre comidas. Abelhas trabalhando em suas respectivas colmeias. Quatro cantos ao todo. Colmeias grandes, bojudas, marrom. Pouca luz. Lâmpadas esparsas. Etc. Tudo era em caixa alta.

Gostaria de descrever o barraco por dentro e relatar o que aconteceu lá. Isso só será possível quando tiver encontrado a minha fita VHS. Tenho um videocassete de sete cabeças e pretendo alimentá-lo com as experiências que, uma vez ingeridas, vomitarei de bom grado, com toda a objetividade de que for capaz.