terça-feira, 25 de dezembro de 2012

49. Crônica de elevador

Imagine o seguinte quadro:
       É noite. Você deixou o carro na rua porque a garagem do prédio estava lotada. Saindo do seu escritório, toma o elevador, passa pelas catracas na recepção, dá boa noite aos seguranças. Sai do prédio e resolve dar uma caminhada.
       Logo passa por um homem sentado num banco da Praça da Ucrânia. A praça está lotada de habitantes locais e turistas em busca de pratos da baixa culinária internacional. Cerca de vinte barracas amarelas iluminadas por dentro, brilhando como balões para quem olha das construções ao redor.
       O homem sentado no banco é branco, usa óculos de aros grossos, terno e gravata, o que seria OK para essa região, mesmo a essa hora, só que não é porque ele não está perspirando nem um pouco bem ali onde basta abrir a boca para sentir o gosto de sal no ar.
       Com a mão esquerda você leva uma maleta cheia de papéis inconspícuos, documentos relativos a casos de clientes seus. Com a direita, uma prancheta à prova de balas, caneta carregada com tinta invisível e uma microcâmera USB 720p embutida pendente de um cordão de silicone revestido por fibra de vidro, para facilitar o estrangulamento.
        Carrega ainda um aparelho radiotransmissor cúbico com um só botão no bolso do paletó, uma carteira cheia de cartões de crédito no bolso traseiro da calça e uma caneta tinteiro comum presa a um maço de notas de dez no bolso da camisa.
        Como bengala (pois é manco), você usa um guarda-chuva preto com lâmina retrátil de aço na ponta, deixando a prancheta cair de vez em quando.
        Toda essa parafernália adiciona uns três quilos ao seu peso na balança da farmácia. Você se olha no espelho atrás do caixa e se acha acabado apesar da barba bem feita, do porte ereto, do hálito refrescante.
        Alguns minutos de caminhada e você torna a passar pelo homem com o laptop no colo. Sentado em outro banco. É mesmo o mesmo homem? Branco, terno e gravata, perfeitamente composto. Como vários outros da região. A tela retroiluminada por LED faz com que o rosto dele pareça emitir um brilho azulado constante, um repouso para os olhos entre os faróis dos carros que buzinam para um cachorro se apressar.
        Você olha ao redor e se pergunta se ele não estaria roubando informações relativas aos seus cartões de crédito via eletromagnetismo, mas não tem a cara de pau de ir conferir na tela aberta.
        Você lembra que hoje é sexta-feira e resolve pegar uma cerveja num bar ali perto. Encontra o pessoal do escritório, senta-se à mesa. A Flávia pergunta se você já ouviu falar sobre o relatório Martins. Explica que se trata de informações importantíssimas a propósito de um sujeito do mesmo nome, coisa que deve ser mantida sob sigilo. Por isso você entende que há o risco de se configurar aqui um vazamento de informação privilegiada. O Roque se intromete dizendo qualquer bobagem, ele come ela de vez em quando e nunca permite que domine uma conversa.
        Antes de voltar à rua, você ainda troca uma palavra com a Patrícia, uma socialite transexual em pós-operatório que quer te levar para casa. A mão direita dela é biônica, o que você nunca teria percebido não fosse pelo toque dela, duro e frio no seu antebraço.
        Chegando ao seu carro, você coloca a chave na ignição. Hesita ainda por um momento antes de dar a partida, pensando em explosões—no espetáculo dos seus membros voando em chamas por sobre a canaleta, no povo que viria ver o que houve, primeiro tímidos, talvez temerosos, mas logo se achegando aos grupos de cinco e sete e dez para dar uma olhadinha mais de perto.
        Você pensa na administração pública e no trabalho que ia dar tirar tudo aquilo dali, aquela massa incandescente da sua carne, e se chamariam o IML, e quanto tempo demoraria para a polícia chegar.
        Pensa na sorte que é estar vivo e ter uma família que te ama e um plano de previdência privada.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

48. Ao redor do Passeio


A família é composta por quinze pessoas de mãos dadas. As quinze pessoas andam ao redor do Passeio Público. Para ilustrarmos o princípio que pretendemos ilustrar será necessário que vários deles morram. Avisa-se de antemão, que é para não chocar. Dispõem-se da seguinte maneira: mais próximo do Passeio, tendo em seu favor o lado da parede (e contra si o lado da fossa) caminha o chefe da família, assim denominado por ser aquele que contribui com a maior renda para o orçamento doméstico. Lembremos que são todos maiores de dezoito anos e economicamente ativos, repito, economicamente ativos. Tendo o Passeio do seu lado direito, carrega pelo braço esquerdo, enganchado, um dos seus irmãos, pois não é necessariamente o pai da família. Este se encontra enganchado na quarta ou quinta posição a contar do lado da parede, tendo a ordem sido definida, e aí está a questão, aí o busílis, qual seja, o que determina a posição dessa família, quando vão passear ao redor do Passeio Público, lembremos, não é o tamanho, nem a idade, nem o prestígio, nem tampouco a cor da pele ou a eloquência, o modo de andar, a elegância contida nos gestos, o tom de voz ou a modulação, mas antes a renda, a pura renda, branquíssima. De repente um ônibus vem ao largo da fossa e mata um. Não aleatoriamente, não sem premeditação ou pelo menos alguma espécie de precaução por parte da família. Pois quem morreu foi o bebê, segurando a sua mamadeira cheia de leite, leite comprado a duras penas pelos irmãos que vão andando na outra ponta e trabalham, ao contrário dele, bebê sanguessuga. O bebê é maior de dezoito anos e economicamente ativo a fim de que ilustremos o que pretendemos ilustrar. E está morto. Seu corpinho rola para a fossa. Antes de atingir o leito lodacento vem outro ônibus ao largo da fenda e mata outro. E assim por diante. Esta é a ilustração do princípio que rege esta família específica, o princípio da proteção absoluta do chefe da família, entendido como a principal fonte de renda familiar, por meio da sua manutenção do lado da parede durante passeios ao redor do Passeio Público.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

47. Como conquistar e manter a cabeça no lugar

Então você está enfrentando dificuldades com a cabeça e manutenção dela no lugar. Todos os dias pergunta-se por quê. O fato é que milhares de homens e mulheres perguntam-se diariamente a mesma coisa: por que as outras pessoas conseguem conquistar e manter a sua própria cabeça no lugar com tanta facilidade, e eu, por mais que me esforce, passe bem, converse, cozinhe, seja uma boa pessoa etc., não? Por que a cabeça sempre me escapa, na melhor das hipóteses apaga-se ao cair do dia, torna-se tão pesada que me é impossível sustentá-la; e por que, nesses casos, deixá-la cair se me revela frequentemente a opção mais fácil, vê-la rolar o melhor remédio? E por que, mesmo em dias estáveis, quando me julgo relativamente seguro(a), a cabeça me sai rolando pelo chão afora e a luz que dela emana não é mais a minha luz?
       A resposta é muito simples: muita gente não nasceu com todas as habilidades necessárias para conquistar e manter facilmente a sua cabeça no lugar. Tais habilidades são de duas ordens distintas: a) a da manutenção da cabeça interna, a cabeça propriamente dita, com a leitura de livros, a alimentação regular, a nutrição do espírito por meio da contemplação estética e de intensa atividade intelectual etc.; b) marketing pessoal.
       São as práticas dessa segunda ordem que fazem falta às cabeças ordinariamente mais notórias em relação à primeira. Esperando que seja essa a situação do nosso leitor (a de notoriedade ordinária!, eminente leitor, embora você seja um péssimo estrategista social), e fazendo vista às pesquisas de mercado mais recentes, damos a seguir as dicas para que você se dê bem socialmente e consiga conquistar e manter, assim, a cabeça, no lugar.
       A conquista é o momento mais crucial quando se está lidando com cabeças. Para estar preparado quando o momento chegar, é importante se lembrar da higiene pessoal. Nunca é demais repetir: tome banho com alguma frequência! Embora as cabeças nem sempre ostentem cabelos limpos e sedosos, relaxar a ponto de exalar odores pungentes não pega bem em nenhum ambiente. Tomado o seu banho, dê uma borrifada daquele perfume caro que a sua avó lhe deu no natal de noventa e oito e vista um traje esporte fino completo. Caso não tenha um sapato normal, um mocassim serve, desde que não seja caramelo. Evite a todo custo os sapatos bicolores. Imprima cartões com o seu nome, telefone e endereço (não se esqueça de distribuí-los—entregue-os em almoços de negócios, desfiles de moda, helicópteros particulares, restaurantes dançantes e iates). Preste atenção na fonte, abuse do itálico. Caso não tenha um celular, está na hora de arranjar um—hoje em dia eles vêm de graça em certos planos, basta consultar a disponibilidade junto à operadora de sua preferência. Para finalizar, arranje um estilo de vida ostensivo, um ethos particular, e passe a agir conformemente. Afinal, coerência é questão de estilo. Não há nada pior do que quem diz uma coisa e faz outra!
       Seguidos esses passos simples, você estará quase lá. A sua cabeça provavelmente estará mais próxima, emitindo uma luz suave. Agarre-a! Atitude é fundamental. Não tenha medo de ser feliz, exceto no primeiro encontro, quando, dependendo da cabeça, talvez seja melhor evitar movimentos bruscos. Algumas cabeças podem doer ou mesmo cair diante de uma vontade muito voraz. Moderação! Mas com muito charme e sofisticação. Encontrando-a pela segunda vez, ofereça-lhe um chá ou um antibiótico. Se ela parecer cansada e recusar o convite para entrar, não insista: não se pode dizer que uma cabeça está desinteressada só por recusar um convite. Convide-a uma e outra vez, quantas vezes for necessário. Se você for lisonjeiro(a), uma hora ou outra obterá o resultado desejado.
       Pois bem. Você tomou banho, vestiu-se na última moda, seguiu todos os passos sugeridos e conquistou a sua própria cabeça. Agora é questão de prendê-la no lugar. A primeira dica, adentrada essa fase, é: sorria. Ao chegar em casa do trabalho ou da balada e encontrar a sua cabeça meio tonta no sofá, sorria, diga oi, cumprimente-a, pergunte-lhe sobre o seu dia—isso sem entrar em detalhes maçantes do seu próprio dia, pois isso pode aborrecer a sua cabeça, fazendo com que ela se desinteresse e perca o equilíbrio num piscar de olhos (olhos distantes, fixos no remoto). Caso esteja voltando do trabalho, coma alguma coisa com poucos carboidratos, escove os dentes com pressa e só depois sorria. Caso a volta seja da balada, escove os dentes antes de tudo. Bafo de cachaça não é pra sua cabeça. Não há nada pior do que gente que bebe!
       Agende compromissos conjuntos pelo menos cinco vezes por semana. Saia com os amigos, os seus e os da sua cabeça. Se puder misturá-los, melhor, lembrando-se sempre da importância de preservar a individualidade dos entes envolvidos.