quarta-feira, 19 de setembro de 2012

44. Como me tornei escritor

1. Com Muita Leitura

Sou um bom leitor desde pequeno. Já durante a primeira infância, no casarão onde morava com minha família, além de outras quatro, meu pai me trazia livros novos da capital hebdomadariamente. Isso para não falar da biblioteca iniciada por meu bisavô—um cômodo magnífico, de pé direito de três metros e vinte, onde se reúne a maior parte do conhecimento acumulado pela humanidade. Foi lá que tomei gosto pela solidão. Aprendi a ler sozinho, com gibis, aos dois anos; aos seis já digeria as obras completas de Dostoievski, aos oito retornara aos românticos… Foi uma infância produtiva. Assim que perceberam minha vocação, meus pais passaram a me amarrar a uma poltrona da biblioteca, de onde só me deixavam sair ao fim do dia, quando as outras crianças já tinham entrado para jantar. “Para proteger dos germes,” dizia a minha mãe, “que habitam as reentrâncias dessas crianças ranhentas”. No entretempo, passavam-me os livros. Que nem eram necessariamente livros, na verdade—qualquer impresso valia: almanaques, clippings de jornais, bulas de remédio… Se minha mãe conseguiu me proteger dos germes, eu tenho minhas dúvidas; mas parece que alguma coisa saiu daí, como que por geração espontânea.
       Hoje em dia eu não tenho o mesmo fôlego. Leio entre quatro e cinco livros por dia. Romances de tamanho médio, nada muito além do comum. Prefiro o realismo involuntário, que é a única corrente literária ingênua e até certo ponto pura que já existiu. Quando não estou lendo nem escrevendo, escuto música ou saio para dar uma volta com meus amigos escritores. Nós falamos sobre literatura, sobre as últimas novidades, sobre quem está vendendo agora e quem já terminou a travessia do rio que lhe cabia. O sucesso e seu anverso, o esquecimento, são os temas recorrentes de nossas conversas.


2. Com a Participação da Família

Chegou uma época em que eu pensava que a literatura não me renderia nada, que mais valeria começar a acumular capital para investir em uma pequena empresa, qualquer coisa nessa linha. E, com efeito, talvez, se eu tivesse feito isso a essa época, se tivesse começado a acumular para investir no futuro, é possível que hoje fosse rico. Pensando bem, é provável mesmo que fosse um dos homens mais ricos da América Latina. Eu me inclinava mais a ser rico do que a ser qualquer outro tipo de artista porque não tinha nenhum jeito com trabalhos manuais. Não podia trabalhar com nada que exigisse movimentos de qualquer espécie, exceto pelos de espírito. E quem sabe se a riqueza não é o equivalente material do refinamento de espírito inato, daquela agudez própria aos escritores? Tolice, decerto; no entanto, foi essa a crise que me viu alcançar meus dez anos.
       É que meus esforços para me tornar um escritor, embora bem sucedidos até então, tendo culminado no lançamento de três coletâneas de histórias infanto-juvenis e um romance policial, não tinham feito senão alçar meu nome a uma condição de fama precária, posição que não garantiria meu futuro, com o qual eu já começava a me preocupar. Como consequência, comecei a diminuir o ritmo de minha produção. Ali onde teria deixado, antes, cem ou duzentas páginas, ao cabo de uma semana descansavam apenas cinquenta. A qualidade dos meus escritos decaiu muito também; cheguei mesmo a arquitetar um roman à clef.
       Mais uma vez, a interferência de minha família se revelou decisiva. Minha mãe me levou a um psiquiatra, que me receitou benzedrina. Algum tempo depois, eu já estava de volta à velha forma. Já meu pai, desgostoso com os meses passados em crise, não se deu por satisfeito tão facilmente. Se tivesse continuado o meu curso natural, sem desvios motivados pelo capricho, argumentava ele, estaria então escrevendo pelo menos duas vezes mais e melhor que antes. Eu dizia que estava tudo bem, que ainda era jovem, que era preciso dar tempo ao tempo; ele grunhia, insone, e em seguida se ausentava por dias a fio. Passava-os enclausurado na sua biblioteca particular, devassando os volumes manuscritos de conhecimentos pedagógicos registrados pelos meus antepassados—volumes magníficos, encapados com um tecido aveludado, as páginas de couro de carneiro, espessas, rabiscadas por penas muito finas. O meu pai procurava por uma resposta, uma alternativa factível para possibilitar o pleno desenvolvimento de seu primogênito. Não tardou a encontrar um método de estímulo muito eficaz. Certa feita, chamou-me ao seu escritório e, entregando-me a chave de casa, disse:
       — Toma, é tua.
       — Ué, pai? Eu tenho esta no meu molho.
       — Ah, grande imbecil! Esta chave é mais que a chave desta casa que habitas. Entrego-lha; e agora é tua esta casa com tudo que tem dentro. Tudo que eu tenho é teu; já conversei com o Pereira — era esse o nome do nosso advogado — a respeito da transferência das propriedades. Porém, da tua parte, deves te esforçar para cumprir uma condição.
       — Qual, pai?
       — Tornar-te, até a maioridade, o maior escritor do mundo.
       Aceitei o desafio com o coração leve. Ora, muito bem—estava feito! Não teria mais que me preocupar com dinheiro; bastaria me consagrar a fazer o que, de resto, já vinha fazendo desde a mais tenra idade. Tudo daria certo.
       As propriedades que hoje constam no meu nome, portanto, devo-as a meu pai, assim como minha posição privilegiada no cenário da literatura universal.


3. Com o Investimento do Estado

Dito e feito, atingi a maioridade mais ou menos à mesma época que atingi a posição de maior escritor do mundo. Cumpre fazer lembrar a ressalva de alguns poucos críticos, os quais, imbuídos do mal do relativismo—o mal deste século que se inicia—, listam, no mesmo papel em que ousam inscrever o meu nome, o de outros três ou quatro meus contemporâneos. São sempre os mesmos três ou quatro, o que, em se tratando de cânones, poderia ser indicativo de certa propriedade da escolha, a constância que aponta para a justificação—quem sabe, pergunta-se o leitor, não são mesmo bons autores, ou pelo menos quase tão bons quanto eu? Ressalva feita, devo acrescentar apenas que já gastei meu tempo lendo as obras de todos os quatro, sobre os quais, aliás, escrevi as biografias que recentemente se esgotaram de todas as livrarias nacionais e estrangeiras; e que, apesar de não lhes faltar certo élan, bem… Digamos apenas que separar o joio do trigo é uma arte cuja maestria depende, além de conhecimento da técnica, de um grande domínio do espírito.
       Fazer literatura no Brasil é participar da política pública. De que vale ser o melhor escritor do mundo se não se é publicamente aclamado? Direto, ao vivo, em tempo real? Isso me faltava, e isso o Estado me forneceu. As feiras de livros que se proliferam pelo país, muito mais raras à época de meus primeiros passos, tiveram em mim um de seus primeiros participantes fixos. Não havia debate em que eu não tomasse parte, mesa redonda em que minha opinião não fosse solicitada. Proferi muitas grandes ideias, dentre ideias rasas, dos demais palestrantes, e outras mais rasas ainda, do público, uma massa de leitores em eterna formação; mas o que importava era estar lá, frente a frente com o povo, tomado pela emoção ou pelo enfado, a personificação mesma do incentivo à cultura. Os prêmios literários foram igualmente importantes. Sobre isso já falei o bastante em meu best-seller Vendendo o Jogo, recomendado a todos os jovens escritores. Para os amantes da tecnologia, há uma versão para tablets no meu site. Os editais, os coquetéis, os apadrinhamentos etc., tudo isso entra aqui etc.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

43. Quatro pontos

Como já dizia Leonardo da Vinci, “A simplicidade é o último grau da sofisticação”, razão porque tirei da receita de lasanha de abobrinha tudo que não passasse de abobrinha. Ficou péssima. Sem cheiro, sem sabor, só uma pasta salgada. Transformei a massa com queijo e molho de tomate numa bola—a forma esférica era a que melhor representava a minha frustração—e a arremessei através da cozinha, cesto de lixo adentro.
       Ponto.

       Eu me sentia puro por dentro. A primavera estava chegando, lírica e inexpugnável e inexpugnavelmente lírica; por esses dias eu vivia num estado de leveza que só um antialérgico forte pode garantir. Fiz um inventário das coisas que me passavam pelo caminho às oito da manhã, no trajeto entre o apartamento do meu affair mais recente e a casa da minha mãe: minivans da Casa Fiesta e dos Correios, caminhões da Transal, ônibus alaranjados substituindo os verdes, pessoas, pessoas, muitas pessoas, e prédios brilhantes sob o sol, emergindo por trás de outdoors, as mil vidraças refletindo uma concentração de raios ultravioleta direto para a minha córnea. A estação anterior, eu já não lembrava qual fora.
       Eu vinha havia algum tempo atrás lutando contra um certo derrotismo inato que percebera havia algum tempo atrás no meu caráter, antes de. Há algum tempo que eu não como e há algum tempo atrás tudo que comia botava para fora: não é a comida certa. Os meus membros estão mais magros e compridos, na verdade secos por dentro, e faz alguns dias que, entre um espirro e outro, não me contenho de alegria. Os meus colegas repararam no meu rosto emaciado. Fizeram comentários. Ao que respondi que “Assim é a vida (…) A mesma história se repete e continua. Um caça o outro. Um trai o outro. Um mata o outro, para não ser ele mesmo morto.” Eles se satisfizeram com a minha resposta, pelo menos o bastante para me deixarem quieto e mais tarde me elegerem Funcionário do Mês, na parede o meu rosto emaciado sobre a citação de L. da Vinci.

       Ponto.
       Prestes a partir para Maringá, entrei em contato com o Meu Pai. Queria me informar sobre o seu paradeiro atual. Ele estava em Buenos Aires. Perguntei quando voltava. Voltaria ao Brasil no dia seguinte. Para casa? “Para Sampa. Mas volto para casa na sexta. Cuidado na viagem. Há duas regiões na estrada para Maringá. Uma a uns 30 quilômetros de Ponta Grossa e outra entre Ortigueira e Bairro dos França. Chegando em Mauá da Serra você segue para Apucarana. Veja os campos, uma das regiões mais bonitas do Brasil. Em Apucarana, logo depois do quartel do exército, há o contorno da cidade. Cuide para não entrar, pois é complicado e demorado para sair. E em Maringá há muitos pardais. Ande sempre a 60 km/h,” ele disse. Estava falante e inspirado! Mencionei que pretendia me desviar um pouco do caminho para ir com o meu affair até Tibagi e ver o Canyon Guartelá. “Vocês podem ir até Tibagi e voltar para a Rodovia do Café. Há uma estrada entre Ortigueira e Tibagi,” ele disse, “mas não sei como é. Estradas pequenas são perigosas, pois têm muito tráfego de máquinas agrícolas. As medianas ou de pista dupla são um pouco melhores, embora seja sempre de desconfiar dos motoristas de fim de semana. Mas as grandes, também chamadas autoestradas, são as piores. Cuidem-se.”
       OK Pai. 
       Comecei a fazer as malas. Deu três, enormes. Na verdade, três montes de roupa de quatro quilos cada. Envolvi todos os três num grande maço de fita crepe e depois envolvi tudo num pedaço comprido de papel de seda. Sou um empacotador de coisas. Não, sou um chapista. Só empacoto e desempacoto hambúrgueres. Comecei a trabalhar como chapista muito cedo, na hamburgueria da família. Quando a minha família morreu, assumi o negócio. Contratei gente para ficar no caixa e gente para receber os clientes com sorrisos e gente para colocar e tirar o queijo do microondas e gente que diz para os outros pararem de fazer o que estão fazendo e se concentrarem mais no queijo que está queimando no microondas. Dos hambúrgueres, do empacotamento deles, bem como do processo de fazê-los sibilarem sobre a chapa quente, tirar deles a gordura acumulada, fazer com que adquiram aquele aspecto de carne bem tostada e portanto livre das bactérias, tendo atingido o estágio final do desempacotamento, disso só eu cuido. Disso e da observância a algumas das regras do novo acordo ortográfico. As outras eu ignoro mais ou menos deliberadamente.
       Ponto.

       Não, eu sou detetive.
       As malas feitas, peguei o carro e fui até o prédio do meu affair mais recente. Chamei pelo interfone. Ela não estava pronta. Subi para esperar. Ela me preparou alguma coisa para comer e disse que num instante a gente já saía. Comi e lavei a louça. Enquanto ela tomava banho, tirei fotos do local. Tudo parecia mais ou menos certo. Parecia não haver nenhuma irregularidade ali, embora seja difícil dizer. É sempre difícil detectar irregularidades num lugar novo, quando não se sabe se o locatário anterior teria ou não teria instalado câmeras microscópicas nos cantos da sala ou se não haveria de repente um microfone embutido no chuveiro de alta pressão. Tirei fotos da sacada, depois da vista que se abria à cidade. No nevoeiro da manhã dava para sentir o cheiro do pólen. Ouvi o clique da porta do banheiro. Foi só o tempo de me virar, ouvi quatro disparos. Vi o meu affair mais recente só com a toalha enrolada ao redor do corpo, os cabelos ainda muito molhados. Ela segurava uma pistola e o cano fumegava. Percebi que vertia muito sangue ao levar a mão ao peito. Isso é para a gente aprender a nunca confiar num affair recente que convida para o apartamento dizendo não estar pronta. Devia ter alguma coisa a ver com o caso que eu vinha investigando, envolvendo a máfia das hamburguerias clandestinas e esboços de Leonardo da Vinci e a primavera. Devia ter alguma coisa a ver com Maringá.

sábado, 15 de setembro de 2012

42. Internet, 02:35 AM

Dois olhos negros espreitam da área central de um retângulo cuja largura é quase imperceptivelmente maior que a altura. O retângulo está no canto direito superior do site e são os olhos de uma velha. Eles enxergam a gente por trás de um véu ou filtro roxo que cobre a foto inteira. Dá para dizer que são os olhos de uma velha por causa das rugas que saem dos cantos. O fotógrafo parece ter registrado uma fração de segundo especialmente importante de uma longa sequência de segundos em que o objeto-velha empreende um esforço para segurar a própria cara no lugar mediante uma elaborada série de contrações dos músculos faciais. Mas os olhos estão bem fixos na área central do retângulo, espreitando.
       Em outro site, procurando por Das Leben Der Anderen, filme de 2006 dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck e com um elenco formado por um bom número de alemães. O roteiro também é da autoria de Florian Henckel von Donnersmarck. Já vi esse filme no cinema, vou baixar para ver de novo. Até que vale a pena. Procurei o filme para baixar e depois fui até o IMDB para descobrir o ano de lançamento e o nome do diretor. Vou até a sacada e fumo um cigarro e volto.
       Em outro site. O novo banner do Netflix exibe, além do logo e, logo abaixo, de uma faixa negra em que o publicitário colocou umas letras miúdas para me incitar quase subliminarmente a assistir Grey’s Anatomy hoje no meu computador ou TV (sic), um still que deduzo facilmente ter sido tirado do seriado mencionado. Na cena representada vemos três médicos ou estudantes de medicina (são médicos bem jovens, se forem médicos), cada um numa posição diferente, todas as três posições denotando uma espécie de despojamento engajado, uma seriedade leve, em uma palavra, o que fomos induzidos ao longo da vida a interpretar como uma das inúmeras faces da norte-americanidade. A expressão no rosto do jovem médico ou estudante de medicina mais à esquerda de quem olha para a tela é um exemplo particularmente apropriado disso que estou falando. Diante dos jovens médicos ou estudantes de medicina, deitado, vemos um paciente de perfil (presumivelmente um ator representando etc.), um homem branco loiro presumivelmente norte-americano de olhos fechados. Ele está morto? Eles estão preocupados? Sem desconfiar de que o roteiro do seriado seria sofisticado o bastante sustentar nesta cena alguma outra tensão que levasse o diretor a aconselhar os atores a assumirem aquela atitude de outro modo dificilmente crível, somos levados a crer que sim — que o paciente está morto, moribundo na melhor das hipóteses, e que isso os preocupa.
        O que me leva a pensar, como sempre que se menciona a morte, em — O gênero ensaístico está morto? O romance? O conto? A crônica? É difícil dizer. Parece-me, na verdade, que se trata de falsos problemas. Porque nunca houve sinais inequívocos de que estivessem vivos. O mesmo não se pode dizer do autor. Este já esteve vivo e morreu e não obstante continua escrevendo. Muito já se falou a respeito. O autor deve ser o zumbi. Já do diretor ninguém cogita a morte. Ora, o diretor é mais vivo que o romance. Se ninguém pensa que pode morrer, olhem lá que estão bem enganados. No que diz respeito à biologia, trata-se de uma pessoa como qualquer outra, e é capaz que, de tão pouco pensarem que pode morrer, o diretor já tenha morrido e ninguém tenha dado por isso. Neste caso, o diretor deve ser o zumbi. Dão-lhe dinheiro, comida, uma cadeira para sentar, contratam assistentes para mover os seus membros, no contrato fica estipulado que ele será detentor de certo poder de decisão. Trata-se de um ritual macabro de celebração do conceito natimorto do livre arbítrio.
       Quanto à morte do autor — ora, creio ser eu um autor e estar vivo, pelo menos o bastante para crer. Pelo menos tanto quanto Florian Henckel von Donnersmarck. Sou mais jovem que ele também, e dizem que o meu futuro é promissor. Neste caso, creio que o mais indicado seria que começassem logo a me dar dinheiro.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

41. Na abertura do Grande Festival de Automóveis

viam-se carros de todas as cores, de todos os modelos, provenientes de todos os grandes fabricantes do mundo e mais alguns de fundo de quintal, espalhados ao longo de vinte hectares de asfalto fresco pontilhado por semirretas brancas e amarelas. As brancas delimitavam os caminhos possíveis, e as amarelas os pontos em que os carros podiam permanecer parados, silenciosos ou com os motores ronronando baixinho ou preenchendo a atmosfera com os estrondos metálicos rasgados das explosões do motor.
       Vidros dianteiros de carros cafonas passaram do translúcido ao fosqueado ao primeiro toque da manhã. Havia carros cujas portas abriam para o lado e carros cujas portas abriam para cima. Carros cujas portas se abriam ao som de palmas dando vista a interiores cromados com porta-copos reguláveis e bancos revestidos de couro de camelo. Carros cujas portas se abriam para interiores mais negros que um buraco. Carros rebaixados e carros incrementados com sistemas de suspensão e amortecimento que os impulsionavam para os céus ao ritmo da música ambiente, um reggaeton tocado em loop. Carros sonolentos e carros que nunca dormem, saídos da linha de produção já prontos para percorrer o país de ponta a ponta na semana seguinte, quando a feira tivesse acabado e fosse hora de provar da velocidade e do vento.
       Durante a tarde, em meio ao vapor da chuva que subia do solo superaquecido, quem estava lá pôde presenciar o espetáculo dos conversíveis erguendo as capotas em sincronia. A ala dos carros antigos em azáfama, os colecionadores abanando as mãos cheias de chaves de fenda e parafusos cintilantes. Os carros equipados com painéis de captação de energia solar retiraram-se calmamente ao galpão. Cederam por barato o asfalto à invasão de motocicletas. Elas chegaram do porto via três porta-aviões, cada um carregado até vinte toneladas acima da capacidade máxima permitida. No centro da área projetada para o festival instalou-se um globo da morte de um quilômetro de diâmetro, uma esfera de superfície refletora perfeitamente lisa feita de uma liga de aço e titânio diamantado. Não havia nela fendas pelas quais um observador externo pudesse ver o que se passava dentro. As motos rodaram e rodaram por horas a fio, cinquenta por vez, e uma longa fila de jogues e customs e choppers se formou em espiral ao redor do globo. Não houve colisões.
       Os ônibus e caminhões chegaram após o jantar. A essa hora, a maior parte dos carros circulava sem direção, em zigue-zague para dentro e fora das faixas, derramando óleo pelos cantos. Adormecidos sobre os volantes, os motoristas faziam arranhar a caixa de câmbio com os joelhos doloridos de tanta flexão.
       O primeiro ônibus chegou carregando uma leva de bicicletas fixas motorizadas. Atrás veio uma caravana cheia de acessórios automotivos. Os caminhões trouxeram as peças de reposição necessárias, encomendadas ao longo do dia por proprietários ciosos do chiado que o carburador vinha produzindo ou do baixo desempenho apresentado pelo sistema de freios na arrancada pela pista de trezentos metros.    
       À hora da saída, o público pedestre se reuniu sobre a plataforma onde deviam esperar pelos carros dos trens e metrôs. Os que estavam mais próximos aos trilhos tiveram a oportunidade de assistir a chegada dos primeiros vagões. Vieram esmagando pelo caminho aparelhos de GPS, televisores, macacos elétricos, airbags descartáveis, triângulos sinalizadores, leitores de blu-ray e DVD e toca-fitas e MP3 com pendrives inseridos nas respectivas portas USB e abandonados à relva. Foi um espetáculo.
       Durante as últimas horas do dia de abertura do festival, os vagões deslizaram para lá e para cá por sobre os destroços cada vez mais fragmentados desses itens, até que só restou o pó. Os carros permaneceram estacionados madrugada adentro, silenciosos e tristes até que a chegada do dia seguinte coincidisse com a dos seus donos.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

40. Permuta #1

Quando o jogo começa e a partir de então fala o cérebro morto. Uma neurose poderia se ensaiar aqui se fosse o caso. Esta é particularmente interessante. Uma análise da situação nos conduzirá a aporias mais ou menos divertidas ou como um observador casmurro diria aborrecidas. Comecemos pelo cenário. O cenário granulado como que numa foto do fim da tarde. Mas pode ser o começo da manhã. O fundo de paredes e sofás naturalmente preto sobre branco. Em primeiro plano duas miniaturas douradas sobre a mesa de vidro. Se eu não soubesse falar outra língua poderia errar à vontade nela. Passaria os dias inteiros errando e ao fim chegaria a algum lugar diferente desse a que se chega quando se está certo até que estivesse certo e pararia de errar e então teria que aprender outra língua e depois ainda outra até aprender todas. Uma linguagem universal poderia se ensaiar aqui se fosse o caso. Nesta que eu falo há duas miniaturas sobre a mesa translúcida no meio da sala. Tudo em silêncio. Em não podendo falar nada as miniaturas ficam quietas. O material de que são feitas é incapaz de comunicar por sons. Os sons que emitem quando tocam a superfície depois de terem sido levantadas e arremessadas contra outra superfície é incapaz de emitir seus próprios sons, portanto ficam quietos. A única linguagem universal que os materiais conhecem é o silêncio. O dourado das miniaturas significa silenciosamente alguma coisa ou então outra. Depende do humor do observador. Quando não há observador as miniaturas significam todas as coisas e quando o observador está sentado no sofá olhando para outra coisa além do nosso campo de visão não significam nada senão para nós, se as vemos, quando as vemos. O observador quando observado pelas miniaturas está louco ou imagina coisas demais. Se as miniaturas falassem numa língua que ele não conhece estariam errando pois em verdade não são capazes de falar, a não ser quando o observador escuta. E o observador não indica escutar nem não escutar. Se o tempo se movesse para frente ou para trás neste cenário específico seria possível dizer se se trata de uma manhã ou de uma tarde se a janela que ilumina tudo e está fora do campo de visão estivesse dentro do campo de visão e passasse a inundar o aposento com uma luz mais forte ou obscurecesse tudo drenando a luz do aposento se fosse o caso. Porém a luz não aumenta nem diminui, o observador não se move, as miniaturas não falam e a janela não está dentro do nosso campo de visão. Em verdade as miniaturas quereriam representar o próprio observador e se não o fazem é apenas porque lhes negamos a faculdade de querer. No entanto querem silenciosamente e numa análise detida constatamos que têm maneiras sutis de comunicá-lo. A linguagem das miniaturas parece ser a linguagem universal na medida em que estão quietas e paradas e, de algum modo, existem. O observador deve existir embora não tão parado quanto as miniaturas. Admitindo a relatividade do tempo será difícil constatar com certeza se as coisas que se movem existem de fato ou se estão apenas paradas e são outras coisas numa sucessão de pontos espaciais aleatórios. Este é o relatório da situação tal como a vemos objetivamente e sem mais tempo para continuar o jogo.

domingo, 2 de setembro de 2012

39. Da morte de um atleta

Elaine chega em casa tirando o casaco e já bota água para ferver, fazer um chá. Levanta o gato da pia e leva ele para o sofá. Tira o gato do sofá, levanta-se, entra no banheiro. Poucos passos do sofá ao banheiro. Gasta cinco minutos analisando o próprio rosto. No rosto ela encontra espinhas que não estão lá e que numa análise mais detida desaparecem. O rosto belo ela acha inchado e numa análise mais detida desaparece. Estranho que o rosto da gente desapareça assim. Como o de pessoas que morrem. Mas tudo bem. O aspirador ela coloca no canto e junta alguns objetos do chão enquanto procura por um colar com pingente azul de vidro de Murano. O colar está enrolado no meu pulso esquerdo enquanto digito estas linhas. Eu não pretendo devolver.
       Ela se lembra de que deixou a água fervendo. Coloca o sachê de chá numa xícara e tira o gato de dentro da pia antes de pegar a chaleira. Mas no caminho esquece de pegar a chaleira e vai ver a mensagem que acaba de chegar no celular. Lendo, repassa mentalmente o itinerário do dia e formula com os lábios imóveis: não vai dar. Hoje não. Tem um compromisso. Não gostaria de ter, passou a semana inteira antecipando e se torturando e finalmente chegou a hora e gostaria de ficar em casa e beber o chá e acariciar o gato até bater a vontade de fazer outra coisa, mas tem um compromisso e vai de uma vez para acabar logo com isso. Tudo bem. Ela vai.
        Sente os dedos da mão latejantes ao apertar o botão do térreo. Uma senhora abre a porta um andar abaixo só para cumprimentar e dar uma advertência pelo barulho tarde da noite. Elaine e o namorado andam passando dos limites, precisam moderar. No sétimo andar, um casal gay faz menção de entrar, mas desistem diante do elevador abarrotado.
        Mais cedo no trabalho Elaine bateu numa menina de cabelo colorido. Elaine é pugilista profissional peso pena e instrutora numa academia próxima ao prédio onde mora no centro. Ela bate em meninas profissionalmente e ensina a bater também. E gosta do que faz. O cabelo da menina em que ela bateu durante boa parte da manhã esvoaçava para um lado e para o outro e com a luz dos refletores refratada no suor que respingava para todos os lados as duas cores pareciam três, quatro—ela chegou a contar sete uma hora, como num arco-íris, se bem que os esteroides… Agora, na rua, à procura de um táxi, elas se cruzam e se cumprimentam amavelmente. Sem rancores. Sem mágoas. Nada além de um olho roxo e dores pulsantes pelo corpo.
        Sempre há taxis disponíveis no Círculo Militar. Ela anda até lá e entra em um carro mais ou menos moderno. A mão dói ao puxar a porta para bater. A mão dói depois também. Durante a viagem ouve uma história no rádio. De um jovem que praticava atletismo. Ele tinha começado cedo. Foi inspirado ou pela morte do pai, ou pelo simples medo da morte. O pai morrera do coração com trinta e um anos. Ele mal lembrava. Só sabia que, desde que descobrira que o mal do pai era genético, tinha na cabeça que ia fazer de tudo para evitar morrer da mesma causa. No caminho ele virou atleta olímpico — Atenas, 2004, participação modesta. De resto, tinha família, uma boa carreira de escritório, cachorro e mãe viva e comida na despensa e na verdade todos os contornos de uma vida satisfatória… Até que completou trinta e um anos. Daí aconteceu alguma coisa. Em rápida sucessão, ele perdeu o emprego, se livrou da mulher, abandonou os filhos, começou a beber. Ficou na sarjeta. Antes de completar trinta e dois estava morto. Parada cardíaca. Morreu no frio do inverno curitibano, embaixo do viaduto do Capanema. Engraçado, o taxista acha. Vê como é a vida. Elaine sorri em resposta.
        Desce na Rui Barbosa em plena hora do rush e segue até a autoescola. Pega uma senha e espera. Espera interminavelmente. Das três atendentes, apenas uma está disponível para conversar com os alunos já matriculados. As outras duas recebem os que ainda não se inscreveram, repassam informações, preenchem formulários e conversam entre si. Na sala de espera todo mundo assiste calado o Jornal Hoje em HD. Elaine se inquieta, pega um café de um real na máquina. Já vem adoçado; ela joga o copo cheio no lixo. Ela é chamada ao último guichê no meio do Vídeo Show, André Marques em carne, gordura e osso falando qualquer coisa sobre qualquer coisa.
        Elaine pede uma reposição de aula. A atendente digita qualquer coisa e olha para a tela do computador. Ela parece o André Marques. Ao cabo de alguns instantes a atendente assume um tom bovino para informar que o prazo inicial já passou; agora, para marcar reposição, Elaine vai ter que pagar uma taxa de cento e setenta reais.
       — Mas foi por causa da autoescola que eu passei do prazo, vocês demoraram para marcar o meu teste, depois demorou mais um mês para marcar a primeira aula, daí é lógico que eu vou perder o prazo?
       — Sim senhora Elaine, a senhora tem razão, mas eu não posso fazer nada, é o sistema, quando passa do prazo ele trava e eu não posso fazer nada…
        Elaine pede para falar com o gerente. De uma porta de fórmica surge uma loira oxigenada meio gorducha de calças justas e top branco escritorial. Ela chama Elaine a uma sala reservada para conversar.
       — Por favor, por aqui.
        Elaine argumenta. A gerente contra-argumenta. Elaine diz que aquela é a autoescola mais cara da cidade, e a pior também. A gerente nega. Alega conhecimento de causa. Ela tem a vantagem do cinismo. A mão de Elaine lateja. Começa a coçar. Podia bater na gerente se quisesse. Mas daí seria um escândalo. Um escândalo verbal pelo menos tem que ter. Elaine fala mais e mais alto. A gerente faz ela notar que elevou o tom de voz. Elaine grita que pelo menos não tem a voz fina. A gerente pede para ela repetir. Ela repete: voz fina, voz fina, voz fina. A gerente pede para falar mais baixo, vai todo mundo ouvir. Melhor que ouçam mesmo, que ninguém que está ali fora cometa o erro de se matricular nessa autoescola de merda. Enfim. Elaine sai dali vencedora: vai pagar uma taxa reduzida. Nunca mais quer voltar a ver a cara daquela gente, o que vai ser impossível, ainda vai precisar marcar o teste prático… Mas tem um certo orgulho nessa vergonha. Pelo menos sente que lutou pelo que é certo.
        O gato a espera no apartamento com um sorriso. O gato sorri para ela com o corpo inteiro. Só olhar para ele já é ganhar um carinho. O gato é a vida e a glória. Elaine deita com ele, que sobe na barriga dela e faz uma massagem de gato. Depois de um cochilo vai dar uma caminhada pelo centro, comprar algumas coisas, encontrar os amigos, beber uma cerveja.