sábado, 15 de setembro de 2012

42. Internet, 02:35 AM

Dois olhos negros espreitam da área central de um retângulo cuja largura é quase imperceptivelmente maior que a altura. O retângulo está no canto direito superior do site e são os olhos de uma velha. Eles enxergam a gente por trás de um véu ou filtro roxo que cobre a foto inteira. Dá para dizer que são os olhos de uma velha por causa das rugas que saem dos cantos. O fotógrafo parece ter registrado uma fração de segundo especialmente importante de uma longa sequência de segundos em que o objeto-velha empreende um esforço para segurar a própria cara no lugar mediante uma elaborada série de contrações dos músculos faciais. Mas os olhos estão bem fixos na área central do retângulo, espreitando.
       Em outro site, procurando por Das Leben Der Anderen, filme de 2006 dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck e com um elenco formado por um bom número de alemães. O roteiro também é da autoria de Florian Henckel von Donnersmarck. Já vi esse filme no cinema, vou baixar para ver de novo. Até que vale a pena. Procurei o filme para baixar e depois fui até o IMDB para descobrir o ano de lançamento e o nome do diretor. Vou até a sacada e fumo um cigarro e volto.
       Em outro site. O novo banner do Netflix exibe, além do logo e, logo abaixo, de uma faixa negra em que o publicitário colocou umas letras miúdas para me incitar quase subliminarmente a assistir Grey’s Anatomy hoje no meu computador ou TV (sic), um still que deduzo facilmente ter sido tirado do seriado mencionado. Na cena representada vemos três médicos ou estudantes de medicina (são médicos bem jovens, se forem médicos), cada um numa posição diferente, todas as três posições denotando uma espécie de despojamento engajado, uma seriedade leve, em uma palavra, o que fomos induzidos ao longo da vida a interpretar como uma das inúmeras faces da norte-americanidade. A expressão no rosto do jovem médico ou estudante de medicina mais à esquerda de quem olha para a tela é um exemplo particularmente apropriado disso que estou falando. Diante dos jovens médicos ou estudantes de medicina, deitado, vemos um paciente de perfil (presumivelmente um ator representando etc.), um homem branco loiro presumivelmente norte-americano de olhos fechados. Ele está morto? Eles estão preocupados? Sem desconfiar de que o roteiro do seriado seria sofisticado o bastante sustentar nesta cena alguma outra tensão que levasse o diretor a aconselhar os atores a assumirem aquela atitude de outro modo dificilmente crível, somos levados a crer que sim — que o paciente está morto, moribundo na melhor das hipóteses, e que isso os preocupa.
        O que me leva a pensar, como sempre que se menciona a morte, em — O gênero ensaístico está morto? O romance? O conto? A crônica? É difícil dizer. Parece-me, na verdade, que se trata de falsos problemas. Porque nunca houve sinais inequívocos de que estivessem vivos. O mesmo não se pode dizer do autor. Este já esteve vivo e morreu e não obstante continua escrevendo. Muito já se falou a respeito. O autor deve ser o zumbi. Já do diretor ninguém cogita a morte. Ora, o diretor é mais vivo que o romance. Se ninguém pensa que pode morrer, olhem lá que estão bem enganados. No que diz respeito à biologia, trata-se de uma pessoa como qualquer outra, e é capaz que, de tão pouco pensarem que pode morrer, o diretor já tenha morrido e ninguém tenha dado por isso. Neste caso, o diretor deve ser o zumbi. Dão-lhe dinheiro, comida, uma cadeira para sentar, contratam assistentes para mover os seus membros, no contrato fica estipulado que ele será detentor de certo poder de decisão. Trata-se de um ritual macabro de celebração do conceito natimorto do livre arbítrio.
       Quanto à morte do autor — ora, creio ser eu um autor e estar vivo, pelo menos o bastante para crer. Pelo menos tanto quanto Florian Henckel von Donnersmarck. Sou mais jovem que ele também, e dizem que o meu futuro é promissor. Neste caso, creio que o mais indicado seria que começassem logo a me dar dinheiro.

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