terça-feira, 18 de setembro de 2012

43. Quatro pontos

Como já dizia Leonardo da Vinci, “A simplicidade é o último grau da sofisticação”, razão porque tirei da receita de lasanha de abobrinha tudo que não passasse de abobrinha. Ficou péssima. Sem cheiro, sem sabor, só uma pasta salgada. Transformei a massa com queijo e molho de tomate numa bola—a forma esférica era a que melhor representava a minha frustração—e a arremessei através da cozinha, cesto de lixo adentro.
       Ponto.

       Eu me sentia puro por dentro. A primavera estava chegando, lírica e inexpugnável e inexpugnavelmente lírica; por esses dias eu vivia num estado de leveza que só um antialérgico forte pode garantir. Fiz um inventário das coisas que me passavam pelo caminho às oito da manhã, no trajeto entre o apartamento do meu affair mais recente e a casa da minha mãe: minivans da Casa Fiesta e dos Correios, caminhões da Transal, ônibus alaranjados substituindo os verdes, pessoas, pessoas, muitas pessoas, e prédios brilhantes sob o sol, emergindo por trás de outdoors, as mil vidraças refletindo uma concentração de raios ultravioleta direto para a minha córnea. A estação anterior, eu já não lembrava qual fora.
       Eu vinha havia algum tempo atrás lutando contra um certo derrotismo inato que percebera havia algum tempo atrás no meu caráter, antes de. Há algum tempo que eu não como e há algum tempo atrás tudo que comia botava para fora: não é a comida certa. Os meus membros estão mais magros e compridos, na verdade secos por dentro, e faz alguns dias que, entre um espirro e outro, não me contenho de alegria. Os meus colegas repararam no meu rosto emaciado. Fizeram comentários. Ao que respondi que “Assim é a vida (…) A mesma história se repete e continua. Um caça o outro. Um trai o outro. Um mata o outro, para não ser ele mesmo morto.” Eles se satisfizeram com a minha resposta, pelo menos o bastante para me deixarem quieto e mais tarde me elegerem Funcionário do Mês, na parede o meu rosto emaciado sobre a citação de L. da Vinci.

       Ponto.
       Prestes a partir para Maringá, entrei em contato com o Meu Pai. Queria me informar sobre o seu paradeiro atual. Ele estava em Buenos Aires. Perguntei quando voltava. Voltaria ao Brasil no dia seguinte. Para casa? “Para Sampa. Mas volto para casa na sexta. Cuidado na viagem. Há duas regiões na estrada para Maringá. Uma a uns 30 quilômetros de Ponta Grossa e outra entre Ortigueira e Bairro dos França. Chegando em Mauá da Serra você segue para Apucarana. Veja os campos, uma das regiões mais bonitas do Brasil. Em Apucarana, logo depois do quartel do exército, há o contorno da cidade. Cuide para não entrar, pois é complicado e demorado para sair. E em Maringá há muitos pardais. Ande sempre a 60 km/h,” ele disse. Estava falante e inspirado! Mencionei que pretendia me desviar um pouco do caminho para ir com o meu affair até Tibagi e ver o Canyon Guartelá. “Vocês podem ir até Tibagi e voltar para a Rodovia do Café. Há uma estrada entre Ortigueira e Tibagi,” ele disse, “mas não sei como é. Estradas pequenas são perigosas, pois têm muito tráfego de máquinas agrícolas. As medianas ou de pista dupla são um pouco melhores, embora seja sempre de desconfiar dos motoristas de fim de semana. Mas as grandes, também chamadas autoestradas, são as piores. Cuidem-se.”
       OK Pai. 
       Comecei a fazer as malas. Deu três, enormes. Na verdade, três montes de roupa de quatro quilos cada. Envolvi todos os três num grande maço de fita crepe e depois envolvi tudo num pedaço comprido de papel de seda. Sou um empacotador de coisas. Não, sou um chapista. Só empacoto e desempacoto hambúrgueres. Comecei a trabalhar como chapista muito cedo, na hamburgueria da família. Quando a minha família morreu, assumi o negócio. Contratei gente para ficar no caixa e gente para receber os clientes com sorrisos e gente para colocar e tirar o queijo do microondas e gente que diz para os outros pararem de fazer o que estão fazendo e se concentrarem mais no queijo que está queimando no microondas. Dos hambúrgueres, do empacotamento deles, bem como do processo de fazê-los sibilarem sobre a chapa quente, tirar deles a gordura acumulada, fazer com que adquiram aquele aspecto de carne bem tostada e portanto livre das bactérias, tendo atingido o estágio final do desempacotamento, disso só eu cuido. Disso e da observância a algumas das regras do novo acordo ortográfico. As outras eu ignoro mais ou menos deliberadamente.
       Ponto.

       Não, eu sou detetive.
       As malas feitas, peguei o carro e fui até o prédio do meu affair mais recente. Chamei pelo interfone. Ela não estava pronta. Subi para esperar. Ela me preparou alguma coisa para comer e disse que num instante a gente já saía. Comi e lavei a louça. Enquanto ela tomava banho, tirei fotos do local. Tudo parecia mais ou menos certo. Parecia não haver nenhuma irregularidade ali, embora seja difícil dizer. É sempre difícil detectar irregularidades num lugar novo, quando não se sabe se o locatário anterior teria ou não teria instalado câmeras microscópicas nos cantos da sala ou se não haveria de repente um microfone embutido no chuveiro de alta pressão. Tirei fotos da sacada, depois da vista que se abria à cidade. No nevoeiro da manhã dava para sentir o cheiro do pólen. Ouvi o clique da porta do banheiro. Foi só o tempo de me virar, ouvi quatro disparos. Vi o meu affair mais recente só com a toalha enrolada ao redor do corpo, os cabelos ainda muito molhados. Ela segurava uma pistola e o cano fumegava. Percebi que vertia muito sangue ao levar a mão ao peito. Isso é para a gente aprender a nunca confiar num affair recente que convida para o apartamento dizendo não estar pronta. Devia ter alguma coisa a ver com o caso que eu vinha investigando, envolvendo a máfia das hamburguerias clandestinas e esboços de Leonardo da Vinci e a primavera. Devia ter alguma coisa a ver com Maringá.

Um comentário: