quarta-feira, 12 de setembro de 2012

41. Na abertura do Grande Festival de Automóveis

viam-se carros de todas as cores, de todos os modelos, provenientes de todos os grandes fabricantes do mundo e mais alguns de fundo de quintal, espalhados ao longo de vinte hectares de asfalto fresco pontilhado por semirretas brancas e amarelas. As brancas delimitavam os caminhos possíveis, e as amarelas os pontos em que os carros podiam permanecer parados, silenciosos ou com os motores ronronando baixinho ou preenchendo a atmosfera com os estrondos metálicos rasgados das explosões do motor.
       Vidros dianteiros de carros cafonas passaram do translúcido ao fosqueado ao primeiro toque da manhã. Havia carros cujas portas abriam para o lado e carros cujas portas abriam para cima. Carros cujas portas se abriam ao som de palmas dando vista a interiores cromados com porta-copos reguláveis e bancos revestidos de couro de camelo. Carros cujas portas se abriam para interiores mais negros que um buraco. Carros rebaixados e carros incrementados com sistemas de suspensão e amortecimento que os impulsionavam para os céus ao ritmo da música ambiente, um reggaeton tocado em loop. Carros sonolentos e carros que nunca dormem, saídos da linha de produção já prontos para percorrer o país de ponta a ponta na semana seguinte, quando a feira tivesse acabado e fosse hora de provar da velocidade e do vento.
       Durante a tarde, em meio ao vapor da chuva que subia do solo superaquecido, quem estava lá pôde presenciar o espetáculo dos conversíveis erguendo as capotas em sincronia. A ala dos carros antigos em azáfama, os colecionadores abanando as mãos cheias de chaves de fenda e parafusos cintilantes. Os carros equipados com painéis de captação de energia solar retiraram-se calmamente ao galpão. Cederam por barato o asfalto à invasão de motocicletas. Elas chegaram do porto via três porta-aviões, cada um carregado até vinte toneladas acima da capacidade máxima permitida. No centro da área projetada para o festival instalou-se um globo da morte de um quilômetro de diâmetro, uma esfera de superfície refletora perfeitamente lisa feita de uma liga de aço e titânio diamantado. Não havia nela fendas pelas quais um observador externo pudesse ver o que se passava dentro. As motos rodaram e rodaram por horas a fio, cinquenta por vez, e uma longa fila de jogues e customs e choppers se formou em espiral ao redor do globo. Não houve colisões.
       Os ônibus e caminhões chegaram após o jantar. A essa hora, a maior parte dos carros circulava sem direção, em zigue-zague para dentro e fora das faixas, derramando óleo pelos cantos. Adormecidos sobre os volantes, os motoristas faziam arranhar a caixa de câmbio com os joelhos doloridos de tanta flexão.
       O primeiro ônibus chegou carregando uma leva de bicicletas fixas motorizadas. Atrás veio uma caravana cheia de acessórios automotivos. Os caminhões trouxeram as peças de reposição necessárias, encomendadas ao longo do dia por proprietários ciosos do chiado que o carburador vinha produzindo ou do baixo desempenho apresentado pelo sistema de freios na arrancada pela pista de trezentos metros.    
       À hora da saída, o público pedestre se reuniu sobre a plataforma onde deviam esperar pelos carros dos trens e metrôs. Os que estavam mais próximos aos trilhos tiveram a oportunidade de assistir a chegada dos primeiros vagões. Vieram esmagando pelo caminho aparelhos de GPS, televisores, macacos elétricos, airbags descartáveis, triângulos sinalizadores, leitores de blu-ray e DVD e toca-fitas e MP3 com pendrives inseridos nas respectivas portas USB e abandonados à relva. Foi um espetáculo.
       Durante as últimas horas do dia de abertura do festival, os vagões deslizaram para lá e para cá por sobre os destroços cada vez mais fragmentados desses itens, até que só restou o pó. Os carros permaneceram estacionados madrugada adentro, silenciosos e tristes até que a chegada do dia seguinte coincidisse com a dos seus donos.

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