sábado, 19 de novembro de 2011

9. Matinhos

engolida pelo esgoto
abandonada pelo mar
a Prefeitura de Matinhos pede socorro

agrupamentos de pessoas que lá nasceram já foram embora
(os chamados matinhenses)
fugiram para Guaratuba
foi só pegar o ferry e pronto
lá estavam dentro de quinze minutos
nem prejuízo tiveram uma vez que voltam todos os dias para o almoço
à tarde e de manhã trabalham
depois dormem na areia
e ficam até

acho até que já estive lá uma vez
foi recentemente na verdade
passei em caminho para outra cidade
me perdi
as casas eram todas iguais sob o pôr-do-sol
quando o sol se pôs eram todas feias
uma estrada serpenteava para fora e me esqueci de entregar o bilhete
fui cuspido de Matinhos
Matinhos não me quis
paciência

engolida pelo esgoto
abandonada pelo mar
Matinhos solicita encarecidamente sua contribuição

ainda resta o pessoal da prefeitura
(além das pessoas que não acreditam em uma nova Atlântida)
estão esperando o barco
que vai levar todo o numerário
com recursos da União
apesar de também se dizer matinhense, o barco

e o povo, como o chamaremos
quando estiver readaptado a outros climas
dormindo em estâncias, fragmentado
se é que precisaremos chamá-los
não me despertam simpatia
certamente não saberiam se comportar aqui em casa
que aliás está uma bagunça

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

8. A vida acontece...

A vida acontece sempre no período entre meio-dia e oito da noite. Nos demais períodos, sonhos e trevas, frequentemente ambos. Ontem sonhei que estava indo para o banco ou voltando de lá. Parando no sinal vermelho, dois homens encapuzados cercaram o meu carro, inseriram mangueiras pelas frestas abertas dos vidros e lançaram gás lacrimogêneo janelas adentro. Não fui afetado. Ofereci um cigarro, eles aceitaram, cada um tentou pegar um e cada um deixou o seu cair. Pedi desculpas, prontamente aceitas. Eles então abordaram o carro em frente ao meu, cujo motorista não reagiu. Removeram-no do banco e o carregaram sobre os ombros rua abaixo, duro e ereto como uma tábua. Logo já tinham escapado ao meu campo de visão. Quando dei por mim, o sinal já tinha aberto e fechado e tornado a abrir. Mas era impossível avançar sem ninguém para conduzir o carro da frente.

domingo, 13 de novembro de 2011

7. Estudo de caso

Não tinha nada para fazer, razão por que cheguei à delegacia antes da hora marcada. O delegado só olhou para mim de relance e me entregou ao carcerário. Cumprimentamo-nos, perguntei onde estava o menino e segui o carcerário por um corredor com cheiro e aparência de jaula. Fui conduzido por um segundo carcerário porta adentro de uma sala em cujo centro o menino me esperava. Me apresentei, sorri como sempre, olá, como vai, eu me chamo tal e estou aqui na qualidade de seu defensor dativo, fui designado e é meu dever fazer o meu melhor, em que posso ajudá-lo, mas no fundo o meu coração tinha parado de bater. Ele percebeu, mas devia estar acostumado com esse efeito, porque sorriu. O sorriso esmoreceu. O rosto voltou a ficar estático e relaxado e assim permaneceu pelo que me pareceu muito tempo. Eu havia dado uma olhada rápida nos formulários na noite anterior, enquanto me barbeava e assobiava uma melodia imbecil: lembrava que o menino tinha dezesseis anos, era viciado, tinha matado. A aparência de um velho maltratado, fraco, um pouco corcunda, sem a maior parte dos dentes. O cheiro dele enchia a sala. Ele me encarava e eu achei que fosse dizer alguma coisa, mas não abriu a boca. Pedi para que me contasse o que havia acontecido da forma mais detalhada possível. Com voz firme e clareza narrativa surpreendente, ele me contou o seguinte.
       Que um dia, acompanhado de uma vizinha, fumou algumas pedras e saiu vagando pelo centro. Que, por volta das cinco da tarde, ele e a vizinha viram um homem saindo de um hotel de luxo na Comendador Araújo e resolveram que iam assaltá-lo. Que estavam sem dinheiro e não carregavam nada além da roupa do corpo, um isqueiro e uma pistola de brinquedo. Eles renderam o homem com a pistola e o fizeram ir até o carro. Iam deitados no banco de trás enquanto o homem dirigia e rangia os dentes. Ele não falava muito, eles tampouco. Mandaram pegar a Rodovia da Uva e por aí seguiram até os arredores de Colombo. Ordenaram que saísse da estrada e parasse o carro num terreno baldio aos fundos de um motel. Ali eles pararam e fizeram o homem sair do carro. Mandaram o homem se ajoelhar, ele se ajoelhou. A menina, que era maior e mais forte que o meu cliente, golpeou o homem com a pistola e ele foi ao chão, ainda acordado. Então se consultaram: deviam matar o homem? Sim. Revezaram-se em dar coronhadas na cabeça dele, que ao cabo de aproximadamente quinze minutos desmaiou pela primeira vez, voltando à consciência após poucos segundos. A essa altura eles lembraram que estavam ali pelo dinheiro. Apalparam o homem, viraram o corpo de barriga para cima, apalparam mais, mas nada da carteira. A menina foi para o carro e voltou segundos depois segurando a carteira e uma chave de fenda. Cinquenta reais dentro da carteira. Ela pegou a nota e enfiou por dentro da calcinha. Passou a chave de fenda para o menino, que se empenhou em golpear o homem com o novo instrumento. O homem desfalecia e retornava a si a intervalos mais ou menos regulares. Exausto e impaciente, o menino teve a idéia de usar o cilindro do extintor de incêndio para terminar o que tinha começado. A menina foi até o carro e tentou abrir o lacre que prendia o extintor ao forro do chão, sem sucesso. O menino tentou também, com os mesmos resultados. Voltaram aonde o homem gemia e lhe chutaram até que cuspisse sangue. Mas continuava vivo. Então eles tornaram a consultar um ao outro. Matavam o homem ou iam embora? Decidiram-se novamente por matar. A menina sugeriu que o garoto enfiasse a chave de fenda na barriga do homem e o rasgasse a partir dali com um movimento brusco na direção da cabeça. O menino tentou, chegou a abrir um buraco pouco acima do umbigo, mas não teve presença de espírito para levar o procedimento a cabo: desmaiou em cima do homem, o rosto contra o peito em que o coração pulsava fraco. A menina então o ergueu pelos braços e tomou da chave de fenda. Em vez de aproveitar o buraco já aberto, cavou outro no peito do homem, que ainda grunhia. A intenção era atingir o coração, mas só conseguiu romper algumas artérias. O homem esbravejou pela primeira vez, e tentou se livrar da menina. Mas ela era pesada e ele estava fraco; não precisou fazer nada além de permanecer sentada sobre ele. O homem voltou a desfalecer. A menina saiu de cima dele e o meu cliente quis se encarregar de finalizar o latrocínio. Ele desferiu mecanicamente mais alguns golpes contra o peito do homem. Os peritos suspeitam que foi só aí que se perfuraram os pulmões. Há controvérsia sobre a causa mortis. Alguns argumentam que o homem já estava morto quando o menino saiu de cima dele, após desferir essa nova série de golpes. Essa é a tese exposta no laudo. Mas há quem sustente que, excepcionalmente resistente, o homem só podia ter sido declarado clinicamente morto após o último golpe, aplicado pela menina com a intenção de ter certeza. Aproveitando o buraco em que a caixa torácica do homem tinha se tornado, ela cravou a chave de fenda à altura do esterno e “arrodeou”. Depois disso, o menino, a menina e os peritos concordam em que o homem estava morto. Eu também. 
      Essa foi a história que o menino me contou. A versão confirmava a da menina. Os dois foram pegos dentro do carro que não sabiam dirigir, adormecidos um sobre o outro. Ao terminar a narração, ele parecia estar tão tranquilo quanto antes de começar a falar. Mas agora eu já não estava assustado. Anotei alguns pontos-chave no meu celular enquanto começava a dar forma a uma estratégia de defesa. Entreguei para ele o meu cartão e pedi que entrasse em contato se fosse preciso. Levantei-me para ir embora e ele me perguntou tranquilamente o que ia acontecer com ele. Respondi que não sabia.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

6. Primeiro mashup

Hoje pela manhã foi capturado Nem, o chefe do tráfico no território até então inexpugnável da USP. Ele estava acompanhado de três policiais civis, um ex-PM e setenta e cinco estudantes baderneiros. Os estudantes e Nem depredaram o prédio da administração da universidade, deixando copos de cerveja e cigarros de ma.co nha largados pelo chão e chamando nosso repórter de viado numa clara demonstração de má educação. O Bope invadiu o prédio ocupado pelos criminosos enquanto todos dormiam, de modo que não houve resistência. Os baderneiros ocupavam o prédio desde Getúlio Vargas, pois suas casas foram derrubadas na primeira onda de repressão ao comunismo. Nem fornecia ma.co nha para eles, que gostavam. Além de todo o efetivo do Bope, oito milhões de policiais foram mobilizados para a operação, que também envolveu duas viaturas, três pedras, sete pistolinhas e uma chaminé. Os oitenta e poucos meliantes foram encaminhados a um restaurante por quilo no Rio de Janeiro, que explodiu, causando a morte de um cinegrafista da emissora concorrente, fato lamentável, por certo, mas com o qual não temos absolutamente nada a ver. O Secretário de Segurança do Rio de Janeiro declarou que o episódio “não é determinante, mas sim importantíssimo para a Educação Superior, pois a USP sempre foi território em que a PM não podia, não conseguia entrar, e agora está lá para toda a comunidade”. Os favelados declararam greve até que os meliantes sejam soltos e a Bolsa Família liberada.
       Fora do eixo Rio-São Paulo, as coisas vão bem. Só que eu cortei meu dedo ontem, pelo que fui convidado a acompanhar um Sargento Rodrigues até a delegacia, a prestar esclarecimentos. Declinei gentilmente o convite, razão por que fui algemado e agraciado com duas coronhadas no ombro. Aceitei então mais que gentilmente o convite. Eles me perguntaram o que eu fazia com uma faca no meio da rua; expliquei que estava cortando laranjas e fui liberado alguns minutos mais tarde, o dedo um pouco inflamado.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

5. Na zona do viaduto

Década passada, durante o grosso da crise econômica mundial, dois pikus passeavam por entre os escombros dos mercados de valores espalhados pela Zona Financeira. Era um cenário escuro e medonho; fumaça saía de máquinas de gelo seco supervalorizadas; os robôs tentavam limpar a bagunça mas acabavam fazendo mais sujeira, porque eram chineses.
       Os jovens pikus tinham saído de casa durante o sono, como frequentemente acontece aos jovens pikus, e acabaram se perdendo!
       “E agora, o que fazer?” Perguntou o piku gorducho.
       “Piku!” Disse o mais magrelo—o que, em linguagem de piku, quer dizer: “Sei lá.”
       E lá se iam dois meses que perambulavam sem rumo nem nada para comer além de cenouras em conserva. Dinheiro eles tinham aos montes, pois sempre o carregavam dentro das meias; mas não havia mais comércio, e as pedras comestíveis que havia simplesmente não valiam o preço então praticado.
       Um dia, pouco antes dos preparativos para o natal começarem a ser mecanicamente pensados pelos marqueteiros ambulantes, um velho mendigo disse para eles: “Continuem reto e dobrem à esquerda no sétimo fogo vermelho.” Depois o velho morreu. Meses mais tarde, folheando uma revista, descobririam que o velho mendigo era na verdade um Rothschild.
       Eles seguiram o caminho indicado. Lá na esquina um pouco além do sétimo fogo vermelho um viaduto muito simpático brotou do chão e se apresentou aos pikus, conduzindo-os, ato contínuo, a um piso de excelência empresarial sobre cujo pavimento os grandes homens de negócios poderiam vir a erigir impérios a crédito, caso não fossem antes capturados pela mão invisível do Mercado.
       Infelizmente, grande parte deles acabou sendo capturada mesmo, e os pikus só escaparam porque conseguiram se esconder num buraco no meio do viaduto, que a essa altura já era bem amigo deles.
       “Vocês podem ficar aí mesmo até as coisas voltarem ao normal,” disse o viaduto. Os pikus agradeceram muito e dormiram por três dias. Quando acordaram, perguntaram pro viaduto sobre a vida dele.
       “Eu sou filho do casamento de um plano malogrado de desvio de verbas com a vontade de reaproveitar as obras públicas em construção que se encontravam paradas durante o exercício financeiro de 1973. O meu pai me abandonou quando eu era muito pequeno. A minha mãe me criou praticamente sozinha até eu completar um ano, quando resolvi que era hora de sair de casa e cumprir a minha função como um viaduto feito. Desde então eu estou aqui. Virei um lugar bacana, todo mundo gostava de ficar em cima de mim, vinham e construíam prédios magníficos, até que a Bolha estourou e deu nisso que vocês estão vendo.”
       Os pikus ficaram tristes com a história. Resolveram que iam ajudar o viaduto. Assim, quando a crise começava a dar sinais de que ia passar e a Bolha ainda não se reconstituíra com a ajuda dos governos dos grandes estados, compraram terrenos sobre o viaduto e construíram fábricas de sorvete ao longo de toda a margem esquerda. A margem direita foi ocupada pelo Diabo, com quem firmaram uma parceria duradoura—eles fabricavam, ele se encarregava da distribuição e da venda, possuidor que era de uma cadeia mundial de restaurantes vegetarianos, mas não veganos. Juntos, os pikus, o viaduto e o Diabo tiveram grande estabilidade financeira, abalada apenas recentemente pela descoberta de fraudes que o contador negou até a polícia chegar, depois do que fugiu para o Havaí e foi feliz para sempre.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

4. Os canalhas


Os canalhas estão chegando. Vestem roupas leves e são profissionalmente habilitados. Vêm numa velocidade estonteante. Carregam consigo objetos adaptados a suas funções específicas, lá de acordo com suas aptidões. Que abundância de funções. É muito talento numa turba só. O chefe deles parece vestir um terno, porém a impressão não subsiste a uma análise mais detida. Trata-se na verdade de bermudas pretas muito justas e meias-calças pretas cobrindo as pernas até os joelhos, o tronco revestido por uma espécie de manto preto de gola V sobre camisa pólo branca. É talvez um sacerdote. Atrás do chefe vem um aglomerado heterogêneo de quinze canalhas carregando itens em sacolas. As sacolas têm tamanhos variados. Sua função simbólica é evidente, embora não para mim. Para mim, podem ser só sacolas mesmo. Os quinze canalhas atravessam a rua revelando atrás de si um único canalha mirrado, os olhos colocados na terra. Muito já se falou sobre ele. Trata-se do médico, pois um estetoscópio enfeita o pescoço encurvado. Ele desaparece no meio de uma multidão de aproximadamente trezentos canalhas que vem vindo aí, cem ou cento e dois metros distante do chefe. Este é o povo, percebe-se pela magreza e expansividade dos gestos não obstante os frequentes cutucões dos capatazes. Estes contam três. Têm oito braços e são felizes, pois são sádicos. E atrás do povo, contornando os buracos do pavimento com a ajuda de réguas e polígrafos, os profissionais liberais tentam adivinhar onde estão os ricos e colocá-los em buracos para poderem comer a comida deles. Os canalhas chegam ao ponto determinado em conferência prévia, reduzem o passo, param, permanecem assim por quinze minutos e vão embora.

3. Retratos de Canequinha

O nome dele é Canequinha. O homem que o representou já é outro; quem assumiu o comando da pessoa é outra pessoa, um advogado feito e tendente à gula como meio de dar cabo de si mesmo, que a vida já dura muito, a careca cresce e os pulmões arranham, a figura em nada semelhante à do jovem deputado com os óculos de aros grossos prefigurando a moda das décadas seguintes. Esse auto-impostor estuda uma representação de si mesmo numa foto de campanha e, trinta anos mais tarde, contempla-se a si mesmo contemplando-se a si mesmo conforme retratado numa fotografia de família.


O homem da fotografia intermediária já não é feliz. É uma foto colorida, mas de cores apagadas. Ele veste um terno cinzento contudo, e na verdade nada denunciaria tom algum para além do espectro do preto-e-branco se não fosse pela ponta de um lenço originalmente turquesa, aqui ciano, que traz na lapela. Enquanto tiravam aquela fotografia ele olhava para si mesmo em outra imagem, mas não parece enxergar nada, concentrado antes em ouvir o canto de um pássaro ou alguém o mandando sorrir. O piso e a parede são de concreto, talvez pertençam ao cômodo de uma casa feita às pressas, uma sala com sofá carcomido e rosário sobre a mesa, e o ângulo de incidência da luz faz pensar que há uma janela à direita do homem, fora do enquadramento.


A representação do homem indiretamente contemplado pelo homem da foto é bem estranha. Não cheguei a vê-la por meio da fotografia anterior, uma vez que o negativo a que tive acesso se encontrava desgastado demais para uma ampliação decente. Tive acesso ao seu conteúdo por meio de uma terceira fotografia, esta de caráter meramente documental, pensada para prestar contas ao partido do dinheiro para o financiamento da campanha do ex-deputado. A bem dizer, o caráter de uma fotografia nunca é meramente documental, pelo menos não nas minhas mãos.


O que se vê aqui, mais claramente que em qualquer outra das demais fotos, é um momento de surrealismo involuntário, um fotograma concebido talvez no momento exato em que Dalí sorria. Trata-se do rosto de Canequinha estampado numa caneca metálica. Ele usa óculos da moda de décadas posteriores e seu pescoço está recortado de modo que as arestas que limitam a pele se encontram num ângulo agudo, fazendo uma ponta de tora ou lança bidimensional. É uma foto de estúdio, totalmente isenta de pretensões autorais. Sente-se o cheiro de pólvora na sombra projetada pela caneca sobre uma superfície perfeitamente lisa até o ponto em que se curva suavemente para cima, retomando daí o aspecto de sonho. Uma quina começa em algum lugar, continuação da curva suave, mas sem progressão aparente, como que saindo do meio da parede.


De todo modo, a foto roga que a contemplemos de modo impessoal, o que procurei fazer aqui.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

2. Primeiro sonho com Charles de Gaulle

Ao entrar no avião, Osvaldo Aranha passou em rápida revista todos os sonhos envolvendo viagens que tivera nos últimos tempos, a começar por aquele em que, tendo visitado a minha família na Amazônia, embarcou numa espécie de ônibus espacial, uma aeronave que decola na vertical e gira em torno do próprio eixo como meio de adquirir momentum. Estávamos todos a comer salgadinhos quando metade da coisa explodiu, mas a viagem continuou como se nada fosse. Naturalmente, chegamos à França com quinze minutos de atraso. Charles de Gaulle nos esperava sobre a pista, dentro de um carro elétrico, olhos e braços bem abertos. Não lembro nada mais, exceto que perdi o ônibus para a viagem do aeroporto ao 11e arrondissement.
       Esse foi um sonho bom, mas não o melhor da categoria. O melhor fora o da noite anterior. A viagem propriamente dita não se consumara; toda a ação transcorria no percurso da minha antiga casa até São José dos Pinhais, um caminho com que me julgava acostumado o suficiente para percorrer de olhos fechados e que, de olhos fechados, revelou-se antes um labirinto prazeroso. Tendo me perdido, desisti de chegar; cheguei de todo modo; um amigo de infância me esperava no saguão dubiamente luxuoso, e se tornou uma garota a meio caminho para não sei onde.

1. Fragmentos de uma aula de finanças

Sim, é grande o futuro. Cada vez mais toma conta do noticiário. Diariamente os jornais estampam. Isto é tema de jornal, de televisão, de internet. Infelizmente se distorce muito. A saber, nós temos uma criança, que é a mais importante. E outras formas de obtenção de sucesso. E depois um computador, e depois uma casa. Um grande número de itens angariados por meios diversos. Isso vai para o meu cofre pessoal, e com ele, depois de certo planejamento, se se pode chamar planejamento, surge a presença aguda. A presença de uma pessoa. Extremamente jurídica. Destinada a sair de uma corrente preestabelecida. Os resultados são favoráveis a tal pessoa, pois é quem executa. Aí, bem. Já temos um foco. O quadro orgânico mundial. Por que orgânico? Contém vários organismos vivos, pontos de intersecção, que se dirigem para norte, sul, leste, oeste. O que dizem os astros sobre isso? Toda pessoa se ressente sobre sua criação. Como tudo na vida, tem princípios. O respeito, a moral, a ética, mas sobretudo, que dão a ela, pessoa, em matéria de fato, sistemática. Nada se cria, nada se modifica, nada se transforma, sem que haja um dispositivo. Supra e super, infra e infer, é simples. Simples para a leitura, simples para a aplicação. Difícil de ser consumado. Cada um tem dentro de si um toque de ditador. Se é objeto, tem estatísticas. Tem números. E despesas necessárias. Enorme demonstração de poder que traz para dentro das nossas cabeças. Tem condições de dar certo. É uma das bases. Pedindo vacinação para o Brasil inteiro, a construção de estradas, de pontes, tudo isso converge, vão estudar esses pedidos, os jovens se despertam, chamo a atenção, isto não é brincadeira. Faz parte do dia a dia. Você anda, você caminha, você precisa estudar. Seus filhos andam, seus filhos caminham, e assim vamos formando a grande massa. O que ele sabe, o que ele imagina, o que ele pensa em saber? Desperdiçadas todas as oportunidades de empregar os tios. Os aviões estão lotados, as estações de turismo estão lotadas, eles amanhã poderão estar nas suas casas. Se está grassando um cancro? É preciso que tenhamos um caráter definido. A igualdade se diferencia. A ética. Se todos estão na mesma situação, todos devem ser a mesma pessoa, dentro de um regime. É a pergunta que pode ser respondida dessa forma. Todas as soluções que o caso requer. Não é o título, mas o princípio. Não é necessário seguir a ordem, pois, se faltar um, os outros estão capengas. A prática tem demonstrado que a unidade é uma característica própria, una, indivisível, aqui como lá, do Chuí ao Amazonas. Visa incorporar todas as pretensões. Todas as situações. De forma que além de necessária é tecnicamente, traz dentro de si, uma característica peculiar. Mas muitas serão enfrentadas que ainda não estão a descoberto. Um parênteses. Mais flexibilidade. É também um retrato. O que é um retrato, que retrato é esse? O que você vê no cartão, o que está impresso na fotografia? Vou fazer sete mil e duzentas casas até outubro de dois mil e quinhentos. É um espelho, uma fotografia. Bem ou malsucedida, se bem ou mal aplicada. Se tudo vai bem, se você sai à noite e volta para casa tranquilo, passa no barzinho e come um quitute qualquer coisa, uma costelinha, se no dia seguinte você tem o seu emprego e anda sossegado na rua e de repente chega alguém com um revólver e diz vamos dar uma volta bem vestido de adidas então de que adianta isso? O alimento compatível com o que você ganha. Tem que entrar no mercado e saber o preço das coisas. É feio isso. Você não é o pitacuda. É um espelho e espelha exatamente. Você vê, a Rússia, comunista, não tinha, um, pedaço, de, carne, no, açougue. Tinham uma igualdade. Não íntima. Este foi o grande problema. Ele não viu, repartiu o vento. Matem a galinha que te dá o sustento e vamos gritar aí na rua abaixo, tudo abaixo. Deixar a barba crescer. Demonstrar austeridade. Distribuir. Mas estão se enganando. Gritem em voz alta e falem em voz alta que espelham uma situação que você traz para dentro da casa e demonstrar a riqueza que não tem. O fumo, o álcool, urgente. Deixar a comunicação. Trazer alimentos como forma de. Cinquenta quilos de feijão, cinco quilos de arroz, isso o seu salário pode pagar. Não se resolve a partida sozinho. Por isso um quadro orgânico, cheio de vida, cheio de vasos comunicantes, um passa pelo outro, e há uma moção, um deflagrar, tá lá, ordem e progresso, qualquer um sabe. Lá o imigrante. Sabe direitinho se comportar, andar, vai se desmanchar. E com o roubo, à luz do dia, consagrados. Tem que mostrar esse tipo de dedicação. É um sonho. Pode ser um pesadelo. Acredito no sonho. Apesar de toda essa coisa, tem lá os seus méritos. Não se pode negar a estrela. É o famoso destino. Veio uma revolução, você vira general. Não brinquem com o sobrenatural. Era pra ser o que era pra ser, vai ser. Tudo que sobe, desce, e tudo que desce, desce. Vamos trabalhar para que, amanhã, quando formos prefeitos, policiais, não saberemos ainda o que somos, em mil novecentos e oitenta e sete. O que estou contando estou contando há quarenta e três anos, sempre ampliando, ampliando. Fui excepcional. Sabia que eu não me encontrava. Nem por isso deixou de transparecer. Falta esperar e, quando o cavalo passar encilhado, montar. Tossir que nem um asmático. Tem que ser tudo dos pensamentos de vocês. Amanhã vocês podem estar assessorando o presidente da república, que na sala dele me mostrou respeito e admiração. Quantas vezes eu passei comendo sanduíche às onze da noite para revisar o jornal. Fui radialista, Eduardo e Belarmina, ganhar duzentos cruzeiros por mês enquanto os meus colegas iam pra Guarujá. Mas nunca tive raiva de ninguém. Eu olho, eu olho, tá olhando o quê, nada, eu olho mesmo. Começa aí a contestação. Sem dar uma de querer afinar a voz. Com a palavra, a instituição. Essa palavra me dá ódio. Outro dia eu comprei uma instituição. Claro que tenho tempo. Muito melhor do que ver gente que não sabe beijar na televisão. Tem gente que beija em automóvel. Isso é um crime contra o beijo. Pelo menos pare o carro. Então eu peguei tubo de pasta. Tinha duas e tinha um brinde, que era o sabonete. Abri o tubo de pasta. Estava pela metade. Dizia promoção. Eu me fiz de trouxa e comprei. Mas trouxa consciente é outra coisa. Não vou fazer que nem Dom Quixote, bater em Sancho Pança. Tenho que ir embora. A minha fisionomia me cansa. O terceiro foco é a universalidade. Para vocês não pensarem que a gente não lê ou coisa parecida. A universalidade, o uso, a aplicação, tudo isso. Está lá. Implica o dever de que tudo figure e se reflita. Vejamos o quadro expositivo. Chamam isso de universalidade. Está claramente exposto no quadro orgânico. Vamos prever, às vezes menos. Está bem esclarecido. Já falei que passa de mil folhas. Me darei por contente se chegar a trinta. Ou irei diretamente para uma clínica neuropsiquiátrica. Me vender por quilo. A clareza da universalidade, pois, que significa que todas as coisas são todas as coisas e se refletem. Tal noção complementada pela regra da coisa bruta. Infrahumanidade regulada, está na lei. Como é uma lei ditatorial, embora seja um erro dizer que é ditatorial, e nem por isso, como José Vieira, a rejeitaremos. Isso disse Miguel Reale, ontem. Se você vai fazer um discurso, deve saber o que vai falar. Se não sabe o que vai falar, não faça discurso. Nem no aniversário do chefe. O silêncio é manifestação da vontade. A boca fechada dá um lucro extraordinário. É bom ficar calado, ouvindo bastante. Passei a sofrer uma espécie de tontura, uma desobediência dos ouvidos. O meu labirinto estava torto. Depois eu falo sobre isso para vocês. Que é um tema agradável. Estava falando em Esparta, em ALexandre o Grande, como ele dominou os Fenícios, como foi inventada a tocha, o canhão, essas coisas interessantes. De tanto ver as coisas se obscurecerem, diante da luta pela clareza, voltamos a ser escravos. Não foi nem modernamente. São as reações do ser humano que podem afetar o nosso dia-a-dia. É uma demonstração eficaz. Mantenho a tese. No disco rígido de cada um de nós, vamos colocar este tema. Vamos dormir à noite, dar uma chance para ele. Indagações, sugestões, o que vão fazer? Discuta com o meu empresário. Está começando a sair da bolsa como baratas das casernas o celular. O celular é uma praga. Tem como suporte o fato de que você nunca pode ser surpreendido. É o princípio da publicidade. O que é a transparência? É a antítese da sala aberta. Você faz uma coisa. Você faz outra coisa. Você faz outra coisa, diferente daquilo que está sendo feito. Chamam de obscuridade. Conclusão. Se houvesse mais transparência, se a aplicação disso fosse transparente, haveria para os cofres uma economia da ordem de oitenta e sete bilhões de salas. Vejam que esta euforia que domina nosso planeta em contrapartida de outros planetas que se encontram em crises sérias tem uma raiz aí. Estamos preocupados. Vamos sacrificar obras. Vamos sacrificar realizações, projetos. A fim de que não sejamos atingidos com força. É um preâmbulo. Estou lendo o jornal para vocês porque sei que vocês não leram. A gente não lê o jornal pela manhã antes de sair de casa. Eu leio. É importante. Quanto sacrifício seria desnecessário. Vou fazer um quadro. Publicado de forma sucinta. É um quadro em que vocês terão um encaminhamento do fenômeno. Um quadro fácil, tipo um almanaque. O ouvido, a sofisticação, o açúcar mascavo, isso vocês colocam depois. Depois vocês esticam, puxam, encompridam. Isso é o básico. Vinte minutos se passam na transcrição do quadro orgânico para o quadro negro. Os alunos estão nervosos. Mexem nervosamente nos celulares e tentam acessar a internet, cujo acesso está restrito por decisão da cúpula educacional. A rede wi-fi interna está destruindo o processo educacional interno, afirmaram. Começa a chover. O tamborilar das gotas logo ultrapassa o rugido dos aviões que vão pousar a duas quadras dali. Enquanto isso, os alunos continuam nervosos. Mexem nervosamente nos celulares outra vez. Tentam acessar a internet, sem sucesso. Sobre todo o barulho se ouve ao longe o gargalhar da cúpula educacional. Por que colocamos esta sequência pra análise de todos os presentes? O assunto poderia ser dito da seguinte forma. Abram na página xis e leiam o artigo xis do número 420. Então seria desnecessária a minha presença. Mas por que fizemos essa exposição? Porque o tom que se dá é um tom aplicativo em diversos aspectos. Vocês podem estar em algum momento praticando atos revestidos de formas absolutamente diversas. Ou como auditores de assuntos relativos. Por que isto? Aqui eu tiro, extraio, deixo de lado o ranço, passo a deixar afinado com a prática. Com aquilo que vocês poderiam ter que responder como deputado. O que são esses temas, o que temos que responder, que perguntas podem ser feitas que nos forçam a conhecer esses temas e fornecer as respostas apontadas? São assuntos onde vamos encontrar uma política. Estamos vivendo embaixo dessa política. Mas eu não quero saber disso. Quero pegar minha bolsa, quero pegar meu caderno, meu livro, quero fazer o que eu quero. Você tente fazer as coisas. Você não consegue. A sua liberdade não pode ficar acéfala, distante. As nossas riquezas distribuídas para a satisfação têm um universo muito disputado. Talvez vocês não estejam ligados hoje ainda a isso. Mas os olhares da população estão concentrados. E nós, que não estamos ligados a nenhuma seita, nós temos que pensar que, se eu não estou ganhando bem, se o meu salario não tem uma conexão com a qualidade do meu trabalho, e de repente estou numa sala e o assunto é este, isto merece uma análise. Porque é o único argumento que nós temos diante da fraqueza e da impotência que nos é colocada por infiltrações. Se não sabemos por onde iniciar não vamos iniciar. Quem diz o que é preciso fazer? É o poder. Ele é eleito pelo povo. Eles elegem. Elegem em função do quê? De uma campanha que fazem antes de serem eleitos. Antes de serem eleitos políticos eles proclamam que vão defender tais posições. Saúde. Estradas. Educação. Ordem pública. Apareceu um aventureiro. Acabarei com os marajás. Cabelos esvoaçantes, boa pinta, o amigo das cunhadas. Acabarei com os marajás. Acabou morto numa cama com a esposa. Ninguém sabe, depois das coletivas. Primeiro eu, depois Mateus. Os jovens já nasceram com essas notícias. De um lado a notícia do nascimento, do outro o assassinato. Isso desde a vinda dos portugueses. Tem uma história que não se conta nas escolas. Tudo isso chama a atenção. De forma que temos que valorizar a nossa presença para valorizar a nossa filosofia. Está subentendido, se não na cara. O presidiário ganha mais que o trabalhador. Sabiam disso? Oitocentos e poucos reais mais previdência mais não sei o quê. Isso é falta de exercício da democracia. Começa tudo com o poder. Ele é que idealiza, quantas escolas, quantos policiais, quantas estradas, quantas coisas. É tudo um problema só. Quem não tem terra é o mesmo que não tem o carro. Tem que ver onde tudo começa. Tudo começa ali. Por exemplo a construção de uma ponte. O poder diz que é preciso construir uma ponte. Por várias razões. Por exemplo a ponte foi mal construída. Não quer pagar. Há uma argumentação. Operários precisam receber. Pode-se mostrar que se exige o pagamento de tal obra. Pergunta-se, como começa tudo? Começa com o planejamento. Quem planeja? O poder. Eu quero examinar o poder. Eu tenho que ir desde o princípio, ver como ele começou. Isso marca um prazo. Desconsidera, veta, vai, pode não gostar, aquela briga e tal e tal. Não tem depois suporte. Pode ter problemas o colégio. Pode ter problemas a ambulância. Pode. E tem muitos problemas? Inúmeros. Procurem, procurem na internet, comecem a se bater. Comecem a criticar ou apoiar ou debater o que eu digo. Essa é a vida do estudante. A maneira de viver. Então. Fui prepotente agora. Estou dando orientações pra vocês. Algum dia darei uma aula, uma aula fina. Por enquanto estou contente. Quais são as etapas? Primeiro a aprovação. Passa por um exame em que você vai verificar. Não é assim. Eu quero uma ponte. É preciso que profissionais compareçam. Aprovada a construção, vocês estão lidando com um assunto em que deu errado alguma coisa. Isso se chama empenho. Está separada. Está destinada. Está reservada. Precisamos pegar um contador para entender isso. Precisa de um investimento. São mais de mil folhas, tudo com número.