terça-feira, 25 de dezembro de 2012

49. Crônica de elevador

Imagine o seguinte quadro:
       É noite. Você deixou o carro na rua porque a garagem do prédio estava lotada. Saindo do seu escritório, toma o elevador, passa pelas catracas na recepção, dá boa noite aos seguranças. Sai do prédio e resolve dar uma caminhada.
       Logo passa por um homem sentado num banco da Praça da Ucrânia. A praça está lotada de habitantes locais e turistas em busca de pratos da baixa culinária internacional. Cerca de vinte barracas amarelas iluminadas por dentro, brilhando como balões para quem olha das construções ao redor.
       O homem sentado no banco é branco, usa óculos de aros grossos, terno e gravata, o que seria OK para essa região, mesmo a essa hora, só que não é porque ele não está perspirando nem um pouco bem ali onde basta abrir a boca para sentir o gosto de sal no ar.
       Com a mão esquerda você leva uma maleta cheia de papéis inconspícuos, documentos relativos a casos de clientes seus. Com a direita, uma prancheta à prova de balas, caneta carregada com tinta invisível e uma microcâmera USB 720p embutida pendente de um cordão de silicone revestido por fibra de vidro, para facilitar o estrangulamento.
        Carrega ainda um aparelho radiotransmissor cúbico com um só botão no bolso do paletó, uma carteira cheia de cartões de crédito no bolso traseiro da calça e uma caneta tinteiro comum presa a um maço de notas de dez no bolso da camisa.
        Como bengala (pois é manco), você usa um guarda-chuva preto com lâmina retrátil de aço na ponta, deixando a prancheta cair de vez em quando.
        Toda essa parafernália adiciona uns três quilos ao seu peso na balança da farmácia. Você se olha no espelho atrás do caixa e se acha acabado apesar da barba bem feita, do porte ereto, do hálito refrescante.
        Alguns minutos de caminhada e você torna a passar pelo homem com o laptop no colo. Sentado em outro banco. É mesmo o mesmo homem? Branco, terno e gravata, perfeitamente composto. Como vários outros da região. A tela retroiluminada por LED faz com que o rosto dele pareça emitir um brilho azulado constante, um repouso para os olhos entre os faróis dos carros que buzinam para um cachorro se apressar.
        Você olha ao redor e se pergunta se ele não estaria roubando informações relativas aos seus cartões de crédito via eletromagnetismo, mas não tem a cara de pau de ir conferir na tela aberta.
        Você lembra que hoje é sexta-feira e resolve pegar uma cerveja num bar ali perto. Encontra o pessoal do escritório, senta-se à mesa. A Flávia pergunta se você já ouviu falar sobre o relatório Martins. Explica que se trata de informações importantíssimas a propósito de um sujeito do mesmo nome, coisa que deve ser mantida sob sigilo. Por isso você entende que há o risco de se configurar aqui um vazamento de informação privilegiada. O Roque se intromete dizendo qualquer bobagem, ele come ela de vez em quando e nunca permite que domine uma conversa.
        Antes de voltar à rua, você ainda troca uma palavra com a Patrícia, uma socialite transexual em pós-operatório que quer te levar para casa. A mão direita dela é biônica, o que você nunca teria percebido não fosse pelo toque dela, duro e frio no seu antebraço.
        Chegando ao seu carro, você coloca a chave na ignição. Hesita ainda por um momento antes de dar a partida, pensando em explosões—no espetáculo dos seus membros voando em chamas por sobre a canaleta, no povo que viria ver o que houve, primeiro tímidos, talvez temerosos, mas logo se achegando aos grupos de cinco e sete e dez para dar uma olhadinha mais de perto.
        Você pensa na administração pública e no trabalho que ia dar tirar tudo aquilo dali, aquela massa incandescente da sua carne, e se chamariam o IML, e quanto tempo demoraria para a polícia chegar.
        Pensa na sorte que é estar vivo e ter uma família que te ama e um plano de previdência privada.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

48. Ao redor do Passeio


A família é composta por quinze pessoas de mãos dadas. As quinze pessoas andam ao redor do Passeio Público. Para ilustrarmos o princípio que pretendemos ilustrar será necessário que vários deles morram. Avisa-se de antemão, que é para não chocar. Dispõem-se da seguinte maneira: mais próximo do Passeio, tendo em seu favor o lado da parede (e contra si o lado da fossa) caminha o chefe da família, assim denominado por ser aquele que contribui com a maior renda para o orçamento doméstico. Lembremos que são todos maiores de dezoito anos e economicamente ativos, repito, economicamente ativos. Tendo o Passeio do seu lado direito, carrega pelo braço esquerdo, enganchado, um dos seus irmãos, pois não é necessariamente o pai da família. Este se encontra enganchado na quarta ou quinta posição a contar do lado da parede, tendo a ordem sido definida, e aí está a questão, aí o busílis, qual seja, o que determina a posição dessa família, quando vão passear ao redor do Passeio Público, lembremos, não é o tamanho, nem a idade, nem o prestígio, nem tampouco a cor da pele ou a eloquência, o modo de andar, a elegância contida nos gestos, o tom de voz ou a modulação, mas antes a renda, a pura renda, branquíssima. De repente um ônibus vem ao largo da fossa e mata um. Não aleatoriamente, não sem premeditação ou pelo menos alguma espécie de precaução por parte da família. Pois quem morreu foi o bebê, segurando a sua mamadeira cheia de leite, leite comprado a duras penas pelos irmãos que vão andando na outra ponta e trabalham, ao contrário dele, bebê sanguessuga. O bebê é maior de dezoito anos e economicamente ativo a fim de que ilustremos o que pretendemos ilustrar. E está morto. Seu corpinho rola para a fossa. Antes de atingir o leito lodacento vem outro ônibus ao largo da fenda e mata outro. E assim por diante. Esta é a ilustração do princípio que rege esta família específica, o princípio da proteção absoluta do chefe da família, entendido como a principal fonte de renda familiar, por meio da sua manutenção do lado da parede durante passeios ao redor do Passeio Público.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

47. Como conquistar e manter a cabeça no lugar

Então você está enfrentando dificuldades com a cabeça e manutenção dela no lugar. Todos os dias pergunta-se por quê. O fato é que milhares de homens e mulheres perguntam-se diariamente a mesma coisa: por que as outras pessoas conseguem conquistar e manter a sua própria cabeça no lugar com tanta facilidade, e eu, por mais que me esforce, passe bem, converse, cozinhe, seja uma boa pessoa etc., não? Por que a cabeça sempre me escapa, na melhor das hipóteses apaga-se ao cair do dia, torna-se tão pesada que me é impossível sustentá-la; e por que, nesses casos, deixá-la cair se me revela frequentemente a opção mais fácil, vê-la rolar o melhor remédio? E por que, mesmo em dias estáveis, quando me julgo relativamente seguro(a), a cabeça me sai rolando pelo chão afora e a luz que dela emana não é mais a minha luz?
       A resposta é muito simples: muita gente não nasceu com todas as habilidades necessárias para conquistar e manter facilmente a sua cabeça no lugar. Tais habilidades são de duas ordens distintas: a) a da manutenção da cabeça interna, a cabeça propriamente dita, com a leitura de livros, a alimentação regular, a nutrição do espírito por meio da contemplação estética e de intensa atividade intelectual etc.; b) marketing pessoal.
       São as práticas dessa segunda ordem que fazem falta às cabeças ordinariamente mais notórias em relação à primeira. Esperando que seja essa a situação do nosso leitor (a de notoriedade ordinária!, eminente leitor, embora você seja um péssimo estrategista social), e fazendo vista às pesquisas de mercado mais recentes, damos a seguir as dicas para que você se dê bem socialmente e consiga conquistar e manter, assim, a cabeça, no lugar.
       A conquista é o momento mais crucial quando se está lidando com cabeças. Para estar preparado quando o momento chegar, é importante se lembrar da higiene pessoal. Nunca é demais repetir: tome banho com alguma frequência! Embora as cabeças nem sempre ostentem cabelos limpos e sedosos, relaxar a ponto de exalar odores pungentes não pega bem em nenhum ambiente. Tomado o seu banho, dê uma borrifada daquele perfume caro que a sua avó lhe deu no natal de noventa e oito e vista um traje esporte fino completo. Caso não tenha um sapato normal, um mocassim serve, desde que não seja caramelo. Evite a todo custo os sapatos bicolores. Imprima cartões com o seu nome, telefone e endereço (não se esqueça de distribuí-los—entregue-os em almoços de negócios, desfiles de moda, helicópteros particulares, restaurantes dançantes e iates). Preste atenção na fonte, abuse do itálico. Caso não tenha um celular, está na hora de arranjar um—hoje em dia eles vêm de graça em certos planos, basta consultar a disponibilidade junto à operadora de sua preferência. Para finalizar, arranje um estilo de vida ostensivo, um ethos particular, e passe a agir conformemente. Afinal, coerência é questão de estilo. Não há nada pior do que quem diz uma coisa e faz outra!
       Seguidos esses passos simples, você estará quase lá. A sua cabeça provavelmente estará mais próxima, emitindo uma luz suave. Agarre-a! Atitude é fundamental. Não tenha medo de ser feliz, exceto no primeiro encontro, quando, dependendo da cabeça, talvez seja melhor evitar movimentos bruscos. Algumas cabeças podem doer ou mesmo cair diante de uma vontade muito voraz. Moderação! Mas com muito charme e sofisticação. Encontrando-a pela segunda vez, ofereça-lhe um chá ou um antibiótico. Se ela parecer cansada e recusar o convite para entrar, não insista: não se pode dizer que uma cabeça está desinteressada só por recusar um convite. Convide-a uma e outra vez, quantas vezes for necessário. Se você for lisonjeiro(a), uma hora ou outra obterá o resultado desejado.
       Pois bem. Você tomou banho, vestiu-se na última moda, seguiu todos os passos sugeridos e conquistou a sua própria cabeça. Agora é questão de prendê-la no lugar. A primeira dica, adentrada essa fase, é: sorria. Ao chegar em casa do trabalho ou da balada e encontrar a sua cabeça meio tonta no sofá, sorria, diga oi, cumprimente-a, pergunte-lhe sobre o seu dia—isso sem entrar em detalhes maçantes do seu próprio dia, pois isso pode aborrecer a sua cabeça, fazendo com que ela se desinteresse e perca o equilíbrio num piscar de olhos (olhos distantes, fixos no remoto). Caso esteja voltando do trabalho, coma alguma coisa com poucos carboidratos, escove os dentes com pressa e só depois sorria. Caso a volta seja da balada, escove os dentes antes de tudo. Bafo de cachaça não é pra sua cabeça. Não há nada pior do que gente que bebe!
       Agende compromissos conjuntos pelo menos cinco vezes por semana. Saia com os amigos, os seus e os da sua cabeça. Se puder misturá-los, melhor, lembrando-se sempre da importância de preservar a individualidade dos entes envolvidos.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

46. Do ponto de vista de um velho sarraceno

Estou interessado no casal, embora me esqueça deles. Não me esqueci de tudo. Há complicações. Eles vieram de mãos dadas, todas as quatro. Não tinham nenhum traço de descontentamento impresso no rosto, em nenhum dos dois rostos, nem sorrisos que lhes desfigurasse a figura com rugas sombrias. Fazia calor. Fazia sol. Possível que carregassem sacolas. Estavam vestidos para o verão, queriam se divertir. O sol e outras estrelas e uns helicópteros de empresas privadas singravam pela abóbada celeste. Era dia, alternadamente noite. Ela trabalhava em onze agências espalhadas pelo território nacional, mas com a ajuda dos helicópteros sempre chegava na hora. Ele fazia música com batedeiras e pequenos objetos e até animais de carapaças de cores variadas. Aí já viu, a história se complica… Vinham pelo caminho que conduzia para fora do bosque de reflorestamento ao redor do parque com placas em memória às primeiras levas de imigrantes ucranianos. Eu via eles a certa distância, todas as quatro mãos dadas, os braços de um cruzados, sobrepostos, entrelaçados, alternadamente aos do outro. Às vezes davam de querer retificar a posição, ficar com os quatro braços estendidos, formando o que poderia ser um quadrilátero se a anatomia humana fosse mais parecida com a geometria euclidiana. A única maneira de alcançarem tal efeito era a seguinte. Um deles, alternadamente o outro, sem largar as mãos do parceiro, girava cento e oitenta graus no mesmo lugar em que estava, pois tinham parado de andar. Isto é, sobre o próprio eixo. Para tanto era necessário passar por baixo do próprio braço, o direito ou o esquerdo. De modo que o que girava terminava de costas para o parceiro que necessariamente descruzava os braços. Era bonito de ver, não era bonito mas era divertido, não era divertido mas é um jeito válido de ver a coisa. No entanto essa posição nunca durava muito tempo, pois logo voltavam a andar e um ou outro deles tropeçava. Então era o mesmo movimento, em sentido contrário, e os braços cruzados de um alternadamente aos do outro outra vez. Os helicópteros pareciam reproduzir esse movimento, e com tamanha naturalidade, com tal sincronia, que cheguei a me perguntar se não seriam eles extensões dos membros do casal, membros estes, lembremos, atados uns aos outros pelo entrelaçamento de dedos ou então, como é o caso dos membros inferiores (pernas), esmagados contra o chão pela força da gravidade, uma e alternadamente a outra, em passo seguro apesar de tudo. O propósito deles, pois deviam ter um propósito, eu não sei qual era. Jamais experimentara daquela espécie de alegria que parece exsudar das pessoas quando, num dia ou numa noite de calor infernal, entrelaçam-se os dedos das mãos e sobrepõem-se os braços e vai-se tropeçando ao longo do caminho em direção a um ponto em que cumprirão um propósito ou terão cumprido um propósito, caso o objetivo fosse apenas chegar. Disse que jamais experimentei essa alegria. Estava mentindo. Uma vez, quando andava com o meu gato, numa coleira comprida, um gato lindo, quarenta quilos… mas aí já viu. A história se complica. É sobre o casal que estamos falando. Este casal que vinha e que eu vi e que já esqueci. Eles tinham cabelos, é claro, loiros, alternadamente escuros como a noite, dependia muito. À sombra eram escuros, ao sol claros. À penumbra eram gris, tais como os de um velhote sarraceno. Ao crepúsculo brilhavam como os vampiros do filme. Objetivamente, nada de errado nisso. Eu já disse que não carregavam sacolas. Traziam, sim, mochilas às costas, uma cada, uma vermelha, outra branca. Transferiam raramente as mochilas das costas de um para as costas do outro sem largar das mãos, as quatro de dedos bem atados, mediante pequenas variações do movimento já descrito. Pareciam experientes nisso como uma mulher acostumada a tirar o sutiã sem tirar a blusa. Incontestável, isso. Passaram por arbustos e tropeçaram. Não chegaram a cair, embora tenham provavelmente vislumbrado a possibilidade durante aquele meio segundo desestabilizados. Gosto deles principalmente porque, em se tratando de um casal, é possível trocar o singular pelo plural mais ou menos à vontade. Gosto de falar deles. Mas não tenho mais nada a dizer sobre eles. De fato, nem me lembro de mais nada, a não ser das complicações envolvidas no árduo caminhar de mãos dadas deles. De qualquer jeito, é melhor parar.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

45. Conselhos

Para quem apenas diante da chuva ou de outro abismo qualquer da linguagem rabisca em vermelho ou azul ou preto ou apenas sublinha qualquer coisa que já estava ali escrita e aproveita para retraçar as letras mais ou menos apagadas da máquina que não liga para a impressão. E retraça e uma e outra vez e de novo, quem diante do abismo da linguagem ou da chuva sob uma marquise gotejando nele rabisca um bloco de notas. Este é um conselho para o nosso amigo que anda de marquise em marquise, de vez em quando acossado pelos carros, de luz em luz feito mariposa—faz frio e a cidade normalmente feia se acende e brilha hoje, reflete todas as luzes uma e outra vez e causa espanto para quem vê tudo tanto de cima, em perspectiva, quanto do chão, relatos do grau zero da plebe, coisa bem marginal, o povo se comportando quase estereotipicamente como o povo—e ele abrindo espaço a encontrões e de quando em quando realiza com destreza um breve deslizar que é como para cortar caminho sobre as pedras úmidas e centenárias do pavimento. Para quem como ele, imitando uma imitação de uma imitação, deus tenha piedade, diante dos abismos da linguagem e descrente de qualquer espécie de espírito malévolo que possa vir tomar posse dos seus membros enquanto dorme quanto mais a esperar o ônibus, leva a mão direita ao bolso direito da calça, tira de lá um maço de cigarros iguais uns aos outros e cada um igual a centenas de outros contabilizáveis se assim se pretendesse ao redor num raio de um quilômetro, e pensa Quantos fumantes encontraria?, e pensa Quantos narizes encontraria?, e pensa que para contabilizar os braços e pernas bastaria, com a licença dos mane/pernetas, dobrar o número dos narizes e esquecendo as dificuldades implicadas em lidar com coisas grandes como números e pessoas e os abismos da linguagem anotar no bloco de notas logo abaixo de outras informações pertinentes: o tempo que leva de uma estação à próxima separado por uma linha vertical do tempo que levou do mesmo ponto ao outro mesmo ponto outro dia se for possível falar em pontos iguais separados pelo tempo e o coeficiente da razão entre esses números e o que ele significa; uma descrição pormenorizada do sol seguida por uma linha que hoje mesmo ele não entende nem faz questão; um rabisco de olhos de gato mas que também pode ser uma pomba ou uma andorinha; encimando a página uma espiral laboriosamente retraçada uma e outra vez como que apenas um lembrete dos abismos, de que é melhor nem falar. Dentro do bloco enquanto ele desce do ônibus e para na frente de um bar pensando se entra ou não as anotações de receitas entreouvidas/cortadas, misturar um quilo de farinha a uma dúzia de ovos e no fim retirar do forno preaquecido uma colher das grandes de margarina, subir a ladeira até a mercearia, furar o olho lá em cima e temperar a gosto; e a fome crescendo, e os cheiros vindo. Procurar no bloco enquanto ele adquire peso insuportável por uma informação específica, que personalidade histórica fez o quê quando, em que lugar, e acima de tudo, com todas as exclamações em vez das interrogações talvez mais acertadas, o que é melhor nunca se perguntar—Por quê!!!! Seguido de algumas linhas ou páginas em branco, reservadas para a explicação que algum dia há de passar por cima dele depressa e com toda a força, buzina estourando e faróis acesos, que há de passar por cima dele mas é para matar e não esclarecer, promessa de verdade como o impacto de um ônibus. Esclarecer ou esclarecer-se quanto ao propósito daquilo mesmo que ele está fazendo agora—o que quer que seja isso, deve estar anotado. Sentar-se ele ou sentar-me eu sobre a banqueta diante da mesa em cima do chão ao lado da parede, sob a luz baça, através do tempo, esperando pelo garçom que circula por entre todo mundo (é casa cheia). Não, tudo falso—o melhor é não estar lá, nem eu nem ele nem ninguém, a casa vazia que não há e os modos de dizê-lo, e dizê-lo para quê se estivesse, imitar e repetir para quê se existe, com todas as pessoas dentro, e desconfiar que elas são fantasmas, espectros de luz e energia, fantasmas de fumaça e calor e alguma materialidade pulsante não obstante fantasmas, manequins com palavras dentro palavras coladas fora, dizeres e palpites por todo lugar. E olhar (se tivesse olhos) para baixo, para o bloco de notas, e constatar a verdade incontestável que é o que está escrito, e gostar disso, e ao mesmo tempo não gostar disso porque não há parâmetro real para comparar. E o pior, retraçar outra vez e mais outra a espiral até que as linhas tão grossas preencham um círculo não perfeito mas quase, e ler na página anterior as instruções executáveis ou auto-executáveis para o dia seguinte, que é hoje, sob o título de Conselhos, dedicatória a quem apenas diante da chuva ou de outro abismo qualquer da linguagem rabisca em vermelho ou azul ou preto ou apenas sublinha etc., em cuja profecia nem sequer se pensou apesar de se ter cumprido, a profecia do dia, as instruções, o germe do que anotar no mesmo bloco de notas pensando em nada e na verdade já vistos e revistos o dia seguinte e o próximo e mais todos os outros de que é cômodo dizer que vêm depois.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

44. Como me tornei escritor

1. Com Muita Leitura

Sou um bom leitor desde pequeno. Já durante a primeira infância, no casarão onde morava com minha família, além de outras quatro, meu pai me trazia livros novos da capital hebdomadariamente. Isso para não falar da biblioteca iniciada por meu bisavô—um cômodo magnífico, de pé direito de três metros e vinte, onde se reúne a maior parte do conhecimento acumulado pela humanidade. Foi lá que tomei gosto pela solidão. Aprendi a ler sozinho, com gibis, aos dois anos; aos seis já digeria as obras completas de Dostoievski, aos oito retornara aos românticos… Foi uma infância produtiva. Assim que perceberam minha vocação, meus pais passaram a me amarrar a uma poltrona da biblioteca, de onde só me deixavam sair ao fim do dia, quando as outras crianças já tinham entrado para jantar. “Para proteger dos germes,” dizia a minha mãe, “que habitam as reentrâncias dessas crianças ranhentas”. No entretempo, passavam-me os livros. Que nem eram necessariamente livros, na verdade—qualquer impresso valia: almanaques, clippings de jornais, bulas de remédio… Se minha mãe conseguiu me proteger dos germes, eu tenho minhas dúvidas; mas parece que alguma coisa saiu daí, como que por geração espontânea.
       Hoje em dia eu não tenho o mesmo fôlego. Leio entre quatro e cinco livros por dia. Romances de tamanho médio, nada muito além do comum. Prefiro o realismo involuntário, que é a única corrente literária ingênua e até certo ponto pura que já existiu. Quando não estou lendo nem escrevendo, escuto música ou saio para dar uma volta com meus amigos escritores. Nós falamos sobre literatura, sobre as últimas novidades, sobre quem está vendendo agora e quem já terminou a travessia do rio que lhe cabia. O sucesso e seu anverso, o esquecimento, são os temas recorrentes de nossas conversas.


2. Com a Participação da Família

Chegou uma época em que eu pensava que a literatura não me renderia nada, que mais valeria começar a acumular capital para investir em uma pequena empresa, qualquer coisa nessa linha. E, com efeito, talvez, se eu tivesse feito isso a essa época, se tivesse começado a acumular para investir no futuro, é possível que hoje fosse rico. Pensando bem, é provável mesmo que fosse um dos homens mais ricos da América Latina. Eu me inclinava mais a ser rico do que a ser qualquer outro tipo de artista porque não tinha nenhum jeito com trabalhos manuais. Não podia trabalhar com nada que exigisse movimentos de qualquer espécie, exceto pelos de espírito. E quem sabe se a riqueza não é o equivalente material do refinamento de espírito inato, daquela agudez própria aos escritores? Tolice, decerto; no entanto, foi essa a crise que me viu alcançar meus dez anos.
       É que meus esforços para me tornar um escritor, embora bem sucedidos até então, tendo culminado no lançamento de três coletâneas de histórias infanto-juvenis e um romance policial, não tinham feito senão alçar meu nome a uma condição de fama precária, posição que não garantiria meu futuro, com o qual eu já começava a me preocupar. Como consequência, comecei a diminuir o ritmo de minha produção. Ali onde teria deixado, antes, cem ou duzentas páginas, ao cabo de uma semana descansavam apenas cinquenta. A qualidade dos meus escritos decaiu muito também; cheguei mesmo a arquitetar um roman à clef.
       Mais uma vez, a interferência de minha família se revelou decisiva. Minha mãe me levou a um psiquiatra, que me receitou benzedrina. Algum tempo depois, eu já estava de volta à velha forma. Já meu pai, desgostoso com os meses passados em crise, não se deu por satisfeito tão facilmente. Se tivesse continuado o meu curso natural, sem desvios motivados pelo capricho, argumentava ele, estaria então escrevendo pelo menos duas vezes mais e melhor que antes. Eu dizia que estava tudo bem, que ainda era jovem, que era preciso dar tempo ao tempo; ele grunhia, insone, e em seguida se ausentava por dias a fio. Passava-os enclausurado na sua biblioteca particular, devassando os volumes manuscritos de conhecimentos pedagógicos registrados pelos meus antepassados—volumes magníficos, encapados com um tecido aveludado, as páginas de couro de carneiro, espessas, rabiscadas por penas muito finas. O meu pai procurava por uma resposta, uma alternativa factível para possibilitar o pleno desenvolvimento de seu primogênito. Não tardou a encontrar um método de estímulo muito eficaz. Certa feita, chamou-me ao seu escritório e, entregando-me a chave de casa, disse:
       — Toma, é tua.
       — Ué, pai? Eu tenho esta no meu molho.
       — Ah, grande imbecil! Esta chave é mais que a chave desta casa que habitas. Entrego-lha; e agora é tua esta casa com tudo que tem dentro. Tudo que eu tenho é teu; já conversei com o Pereira — era esse o nome do nosso advogado — a respeito da transferência das propriedades. Porém, da tua parte, deves te esforçar para cumprir uma condição.
       — Qual, pai?
       — Tornar-te, até a maioridade, o maior escritor do mundo.
       Aceitei o desafio com o coração leve. Ora, muito bem—estava feito! Não teria mais que me preocupar com dinheiro; bastaria me consagrar a fazer o que, de resto, já vinha fazendo desde a mais tenra idade. Tudo daria certo.
       As propriedades que hoje constam no meu nome, portanto, devo-as a meu pai, assim como minha posição privilegiada no cenário da literatura universal.


3. Com o Investimento do Estado

Dito e feito, atingi a maioridade mais ou menos à mesma época que atingi a posição de maior escritor do mundo. Cumpre fazer lembrar a ressalva de alguns poucos críticos, os quais, imbuídos do mal do relativismo—o mal deste século que se inicia—, listam, no mesmo papel em que ousam inscrever o meu nome, o de outros três ou quatro meus contemporâneos. São sempre os mesmos três ou quatro, o que, em se tratando de cânones, poderia ser indicativo de certa propriedade da escolha, a constância que aponta para a justificação—quem sabe, pergunta-se o leitor, não são mesmo bons autores, ou pelo menos quase tão bons quanto eu? Ressalva feita, devo acrescentar apenas que já gastei meu tempo lendo as obras de todos os quatro, sobre os quais, aliás, escrevi as biografias que recentemente se esgotaram de todas as livrarias nacionais e estrangeiras; e que, apesar de não lhes faltar certo élan, bem… Digamos apenas que separar o joio do trigo é uma arte cuja maestria depende, além de conhecimento da técnica, de um grande domínio do espírito.
       Fazer literatura no Brasil é participar da política pública. De que vale ser o melhor escritor do mundo se não se é publicamente aclamado? Direto, ao vivo, em tempo real? Isso me faltava, e isso o Estado me forneceu. As feiras de livros que se proliferam pelo país, muito mais raras à época de meus primeiros passos, tiveram em mim um de seus primeiros participantes fixos. Não havia debate em que eu não tomasse parte, mesa redonda em que minha opinião não fosse solicitada. Proferi muitas grandes ideias, dentre ideias rasas, dos demais palestrantes, e outras mais rasas ainda, do público, uma massa de leitores em eterna formação; mas o que importava era estar lá, frente a frente com o povo, tomado pela emoção ou pelo enfado, a personificação mesma do incentivo à cultura. Os prêmios literários foram igualmente importantes. Sobre isso já falei o bastante em meu best-seller Vendendo o Jogo, recomendado a todos os jovens escritores. Para os amantes da tecnologia, há uma versão para tablets no meu site. Os editais, os coquetéis, os apadrinhamentos etc., tudo isso entra aqui etc.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

43. Quatro pontos

Como já dizia Leonardo da Vinci, “A simplicidade é o último grau da sofisticação”, razão porque tirei da receita de lasanha de abobrinha tudo que não passasse de abobrinha. Ficou péssima. Sem cheiro, sem sabor, só uma pasta salgada. Transformei a massa com queijo e molho de tomate numa bola—a forma esférica era a que melhor representava a minha frustração—e a arremessei através da cozinha, cesto de lixo adentro.
       Ponto.

       Eu me sentia puro por dentro. A primavera estava chegando, lírica e inexpugnável e inexpugnavelmente lírica; por esses dias eu vivia num estado de leveza que só um antialérgico forte pode garantir. Fiz um inventário das coisas que me passavam pelo caminho às oito da manhã, no trajeto entre o apartamento do meu affair mais recente e a casa da minha mãe: minivans da Casa Fiesta e dos Correios, caminhões da Transal, ônibus alaranjados substituindo os verdes, pessoas, pessoas, muitas pessoas, e prédios brilhantes sob o sol, emergindo por trás de outdoors, as mil vidraças refletindo uma concentração de raios ultravioleta direto para a minha córnea. A estação anterior, eu já não lembrava qual fora.
       Eu vinha havia algum tempo atrás lutando contra um certo derrotismo inato que percebera havia algum tempo atrás no meu caráter, antes de. Há algum tempo que eu não como e há algum tempo atrás tudo que comia botava para fora: não é a comida certa. Os meus membros estão mais magros e compridos, na verdade secos por dentro, e faz alguns dias que, entre um espirro e outro, não me contenho de alegria. Os meus colegas repararam no meu rosto emaciado. Fizeram comentários. Ao que respondi que “Assim é a vida (…) A mesma história se repete e continua. Um caça o outro. Um trai o outro. Um mata o outro, para não ser ele mesmo morto.” Eles se satisfizeram com a minha resposta, pelo menos o bastante para me deixarem quieto e mais tarde me elegerem Funcionário do Mês, na parede o meu rosto emaciado sobre a citação de L. da Vinci.

       Ponto.
       Prestes a partir para Maringá, entrei em contato com o Meu Pai. Queria me informar sobre o seu paradeiro atual. Ele estava em Buenos Aires. Perguntei quando voltava. Voltaria ao Brasil no dia seguinte. Para casa? “Para Sampa. Mas volto para casa na sexta. Cuidado na viagem. Há duas regiões na estrada para Maringá. Uma a uns 30 quilômetros de Ponta Grossa e outra entre Ortigueira e Bairro dos França. Chegando em Mauá da Serra você segue para Apucarana. Veja os campos, uma das regiões mais bonitas do Brasil. Em Apucarana, logo depois do quartel do exército, há o contorno da cidade. Cuide para não entrar, pois é complicado e demorado para sair. E em Maringá há muitos pardais. Ande sempre a 60 km/h,” ele disse. Estava falante e inspirado! Mencionei que pretendia me desviar um pouco do caminho para ir com o meu affair até Tibagi e ver o Canyon Guartelá. “Vocês podem ir até Tibagi e voltar para a Rodovia do Café. Há uma estrada entre Ortigueira e Tibagi,” ele disse, “mas não sei como é. Estradas pequenas são perigosas, pois têm muito tráfego de máquinas agrícolas. As medianas ou de pista dupla são um pouco melhores, embora seja sempre de desconfiar dos motoristas de fim de semana. Mas as grandes, também chamadas autoestradas, são as piores. Cuidem-se.”
       OK Pai. 
       Comecei a fazer as malas. Deu três, enormes. Na verdade, três montes de roupa de quatro quilos cada. Envolvi todos os três num grande maço de fita crepe e depois envolvi tudo num pedaço comprido de papel de seda. Sou um empacotador de coisas. Não, sou um chapista. Só empacoto e desempacoto hambúrgueres. Comecei a trabalhar como chapista muito cedo, na hamburgueria da família. Quando a minha família morreu, assumi o negócio. Contratei gente para ficar no caixa e gente para receber os clientes com sorrisos e gente para colocar e tirar o queijo do microondas e gente que diz para os outros pararem de fazer o que estão fazendo e se concentrarem mais no queijo que está queimando no microondas. Dos hambúrgueres, do empacotamento deles, bem como do processo de fazê-los sibilarem sobre a chapa quente, tirar deles a gordura acumulada, fazer com que adquiram aquele aspecto de carne bem tostada e portanto livre das bactérias, tendo atingido o estágio final do desempacotamento, disso só eu cuido. Disso e da observância a algumas das regras do novo acordo ortográfico. As outras eu ignoro mais ou menos deliberadamente.
       Ponto.

       Não, eu sou detetive.
       As malas feitas, peguei o carro e fui até o prédio do meu affair mais recente. Chamei pelo interfone. Ela não estava pronta. Subi para esperar. Ela me preparou alguma coisa para comer e disse que num instante a gente já saía. Comi e lavei a louça. Enquanto ela tomava banho, tirei fotos do local. Tudo parecia mais ou menos certo. Parecia não haver nenhuma irregularidade ali, embora seja difícil dizer. É sempre difícil detectar irregularidades num lugar novo, quando não se sabe se o locatário anterior teria ou não teria instalado câmeras microscópicas nos cantos da sala ou se não haveria de repente um microfone embutido no chuveiro de alta pressão. Tirei fotos da sacada, depois da vista que se abria à cidade. No nevoeiro da manhã dava para sentir o cheiro do pólen. Ouvi o clique da porta do banheiro. Foi só o tempo de me virar, ouvi quatro disparos. Vi o meu affair mais recente só com a toalha enrolada ao redor do corpo, os cabelos ainda muito molhados. Ela segurava uma pistola e o cano fumegava. Percebi que vertia muito sangue ao levar a mão ao peito. Isso é para a gente aprender a nunca confiar num affair recente que convida para o apartamento dizendo não estar pronta. Devia ter alguma coisa a ver com o caso que eu vinha investigando, envolvendo a máfia das hamburguerias clandestinas e esboços de Leonardo da Vinci e a primavera. Devia ter alguma coisa a ver com Maringá.

sábado, 15 de setembro de 2012

42. Internet, 02:35 AM

Dois olhos negros espreitam da área central de um retângulo cuja largura é quase imperceptivelmente maior que a altura. O retângulo está no canto direito superior do site e são os olhos de uma velha. Eles enxergam a gente por trás de um véu ou filtro roxo que cobre a foto inteira. Dá para dizer que são os olhos de uma velha por causa das rugas que saem dos cantos. O fotógrafo parece ter registrado uma fração de segundo especialmente importante de uma longa sequência de segundos em que o objeto-velha empreende um esforço para segurar a própria cara no lugar mediante uma elaborada série de contrações dos músculos faciais. Mas os olhos estão bem fixos na área central do retângulo, espreitando.
       Em outro site, procurando por Das Leben Der Anderen, filme de 2006 dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck e com um elenco formado por um bom número de alemães. O roteiro também é da autoria de Florian Henckel von Donnersmarck. Já vi esse filme no cinema, vou baixar para ver de novo. Até que vale a pena. Procurei o filme para baixar e depois fui até o IMDB para descobrir o ano de lançamento e o nome do diretor. Vou até a sacada e fumo um cigarro e volto.
       Em outro site. O novo banner do Netflix exibe, além do logo e, logo abaixo, de uma faixa negra em que o publicitário colocou umas letras miúdas para me incitar quase subliminarmente a assistir Grey’s Anatomy hoje no meu computador ou TV (sic), um still que deduzo facilmente ter sido tirado do seriado mencionado. Na cena representada vemos três médicos ou estudantes de medicina (são médicos bem jovens, se forem médicos), cada um numa posição diferente, todas as três posições denotando uma espécie de despojamento engajado, uma seriedade leve, em uma palavra, o que fomos induzidos ao longo da vida a interpretar como uma das inúmeras faces da norte-americanidade. A expressão no rosto do jovem médico ou estudante de medicina mais à esquerda de quem olha para a tela é um exemplo particularmente apropriado disso que estou falando. Diante dos jovens médicos ou estudantes de medicina, deitado, vemos um paciente de perfil (presumivelmente um ator representando etc.), um homem branco loiro presumivelmente norte-americano de olhos fechados. Ele está morto? Eles estão preocupados? Sem desconfiar de que o roteiro do seriado seria sofisticado o bastante sustentar nesta cena alguma outra tensão que levasse o diretor a aconselhar os atores a assumirem aquela atitude de outro modo dificilmente crível, somos levados a crer que sim — que o paciente está morto, moribundo na melhor das hipóteses, e que isso os preocupa.
        O que me leva a pensar, como sempre que se menciona a morte, em — O gênero ensaístico está morto? O romance? O conto? A crônica? É difícil dizer. Parece-me, na verdade, que se trata de falsos problemas. Porque nunca houve sinais inequívocos de que estivessem vivos. O mesmo não se pode dizer do autor. Este já esteve vivo e morreu e não obstante continua escrevendo. Muito já se falou a respeito. O autor deve ser o zumbi. Já do diretor ninguém cogita a morte. Ora, o diretor é mais vivo que o romance. Se ninguém pensa que pode morrer, olhem lá que estão bem enganados. No que diz respeito à biologia, trata-se de uma pessoa como qualquer outra, e é capaz que, de tão pouco pensarem que pode morrer, o diretor já tenha morrido e ninguém tenha dado por isso. Neste caso, o diretor deve ser o zumbi. Dão-lhe dinheiro, comida, uma cadeira para sentar, contratam assistentes para mover os seus membros, no contrato fica estipulado que ele será detentor de certo poder de decisão. Trata-se de um ritual macabro de celebração do conceito natimorto do livre arbítrio.
       Quanto à morte do autor — ora, creio ser eu um autor e estar vivo, pelo menos o bastante para crer. Pelo menos tanto quanto Florian Henckel von Donnersmarck. Sou mais jovem que ele também, e dizem que o meu futuro é promissor. Neste caso, creio que o mais indicado seria que começassem logo a me dar dinheiro.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

41. Na abertura do Grande Festival de Automóveis

viam-se carros de todas as cores, de todos os modelos, provenientes de todos os grandes fabricantes do mundo e mais alguns de fundo de quintal, espalhados ao longo de vinte hectares de asfalto fresco pontilhado por semirretas brancas e amarelas. As brancas delimitavam os caminhos possíveis, e as amarelas os pontos em que os carros podiam permanecer parados, silenciosos ou com os motores ronronando baixinho ou preenchendo a atmosfera com os estrondos metálicos rasgados das explosões do motor.
       Vidros dianteiros de carros cafonas passaram do translúcido ao fosqueado ao primeiro toque da manhã. Havia carros cujas portas abriam para o lado e carros cujas portas abriam para cima. Carros cujas portas se abriam ao som de palmas dando vista a interiores cromados com porta-copos reguláveis e bancos revestidos de couro de camelo. Carros cujas portas se abriam para interiores mais negros que um buraco. Carros rebaixados e carros incrementados com sistemas de suspensão e amortecimento que os impulsionavam para os céus ao ritmo da música ambiente, um reggaeton tocado em loop. Carros sonolentos e carros que nunca dormem, saídos da linha de produção já prontos para percorrer o país de ponta a ponta na semana seguinte, quando a feira tivesse acabado e fosse hora de provar da velocidade e do vento.
       Durante a tarde, em meio ao vapor da chuva que subia do solo superaquecido, quem estava lá pôde presenciar o espetáculo dos conversíveis erguendo as capotas em sincronia. A ala dos carros antigos em azáfama, os colecionadores abanando as mãos cheias de chaves de fenda e parafusos cintilantes. Os carros equipados com painéis de captação de energia solar retiraram-se calmamente ao galpão. Cederam por barato o asfalto à invasão de motocicletas. Elas chegaram do porto via três porta-aviões, cada um carregado até vinte toneladas acima da capacidade máxima permitida. No centro da área projetada para o festival instalou-se um globo da morte de um quilômetro de diâmetro, uma esfera de superfície refletora perfeitamente lisa feita de uma liga de aço e titânio diamantado. Não havia nela fendas pelas quais um observador externo pudesse ver o que se passava dentro. As motos rodaram e rodaram por horas a fio, cinquenta por vez, e uma longa fila de jogues e customs e choppers se formou em espiral ao redor do globo. Não houve colisões.
       Os ônibus e caminhões chegaram após o jantar. A essa hora, a maior parte dos carros circulava sem direção, em zigue-zague para dentro e fora das faixas, derramando óleo pelos cantos. Adormecidos sobre os volantes, os motoristas faziam arranhar a caixa de câmbio com os joelhos doloridos de tanta flexão.
       O primeiro ônibus chegou carregando uma leva de bicicletas fixas motorizadas. Atrás veio uma caravana cheia de acessórios automotivos. Os caminhões trouxeram as peças de reposição necessárias, encomendadas ao longo do dia por proprietários ciosos do chiado que o carburador vinha produzindo ou do baixo desempenho apresentado pelo sistema de freios na arrancada pela pista de trezentos metros.    
       À hora da saída, o público pedestre se reuniu sobre a plataforma onde deviam esperar pelos carros dos trens e metrôs. Os que estavam mais próximos aos trilhos tiveram a oportunidade de assistir a chegada dos primeiros vagões. Vieram esmagando pelo caminho aparelhos de GPS, televisores, macacos elétricos, airbags descartáveis, triângulos sinalizadores, leitores de blu-ray e DVD e toca-fitas e MP3 com pendrives inseridos nas respectivas portas USB e abandonados à relva. Foi um espetáculo.
       Durante as últimas horas do dia de abertura do festival, os vagões deslizaram para lá e para cá por sobre os destroços cada vez mais fragmentados desses itens, até que só restou o pó. Os carros permaneceram estacionados madrugada adentro, silenciosos e tristes até que a chegada do dia seguinte coincidisse com a dos seus donos.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

40. Permuta #1

Quando o jogo começa e a partir de então fala o cérebro morto. Uma neurose poderia se ensaiar aqui se fosse o caso. Esta é particularmente interessante. Uma análise da situação nos conduzirá a aporias mais ou menos divertidas ou como um observador casmurro diria aborrecidas. Comecemos pelo cenário. O cenário granulado como que numa foto do fim da tarde. Mas pode ser o começo da manhã. O fundo de paredes e sofás naturalmente preto sobre branco. Em primeiro plano duas miniaturas douradas sobre a mesa de vidro. Se eu não soubesse falar outra língua poderia errar à vontade nela. Passaria os dias inteiros errando e ao fim chegaria a algum lugar diferente desse a que se chega quando se está certo até que estivesse certo e pararia de errar e então teria que aprender outra língua e depois ainda outra até aprender todas. Uma linguagem universal poderia se ensaiar aqui se fosse o caso. Nesta que eu falo há duas miniaturas sobre a mesa translúcida no meio da sala. Tudo em silêncio. Em não podendo falar nada as miniaturas ficam quietas. O material de que são feitas é incapaz de comunicar por sons. Os sons que emitem quando tocam a superfície depois de terem sido levantadas e arremessadas contra outra superfície é incapaz de emitir seus próprios sons, portanto ficam quietos. A única linguagem universal que os materiais conhecem é o silêncio. O dourado das miniaturas significa silenciosamente alguma coisa ou então outra. Depende do humor do observador. Quando não há observador as miniaturas significam todas as coisas e quando o observador está sentado no sofá olhando para outra coisa além do nosso campo de visão não significam nada senão para nós, se as vemos, quando as vemos. O observador quando observado pelas miniaturas está louco ou imagina coisas demais. Se as miniaturas falassem numa língua que ele não conhece estariam errando pois em verdade não são capazes de falar, a não ser quando o observador escuta. E o observador não indica escutar nem não escutar. Se o tempo se movesse para frente ou para trás neste cenário específico seria possível dizer se se trata de uma manhã ou de uma tarde se a janela que ilumina tudo e está fora do campo de visão estivesse dentro do campo de visão e passasse a inundar o aposento com uma luz mais forte ou obscurecesse tudo drenando a luz do aposento se fosse o caso. Porém a luz não aumenta nem diminui, o observador não se move, as miniaturas não falam e a janela não está dentro do nosso campo de visão. Em verdade as miniaturas quereriam representar o próprio observador e se não o fazem é apenas porque lhes negamos a faculdade de querer. No entanto querem silenciosamente e numa análise detida constatamos que têm maneiras sutis de comunicá-lo. A linguagem das miniaturas parece ser a linguagem universal na medida em que estão quietas e paradas e, de algum modo, existem. O observador deve existir embora não tão parado quanto as miniaturas. Admitindo a relatividade do tempo será difícil constatar com certeza se as coisas que se movem existem de fato ou se estão apenas paradas e são outras coisas numa sucessão de pontos espaciais aleatórios. Este é o relatório da situação tal como a vemos objetivamente e sem mais tempo para continuar o jogo.

domingo, 2 de setembro de 2012

39. Da morte de um atleta

Elaine chega em casa tirando o casaco e já bota água para ferver, fazer um chá. Levanta o gato da pia e leva ele para o sofá. Tira o gato do sofá, levanta-se, entra no banheiro. Poucos passos do sofá ao banheiro. Gasta cinco minutos analisando o próprio rosto. No rosto ela encontra espinhas que não estão lá e que numa análise mais detida desaparecem. O rosto belo ela acha inchado e numa análise mais detida desaparece. Estranho que o rosto da gente desapareça assim. Como o de pessoas que morrem. Mas tudo bem. O aspirador ela coloca no canto e junta alguns objetos do chão enquanto procura por um colar com pingente azul de vidro de Murano. O colar está enrolado no meu pulso esquerdo enquanto digito estas linhas. Eu não pretendo devolver.
       Ela se lembra de que deixou a água fervendo. Coloca o sachê de chá numa xícara e tira o gato de dentro da pia antes de pegar a chaleira. Mas no caminho esquece de pegar a chaleira e vai ver a mensagem que acaba de chegar no celular. Lendo, repassa mentalmente o itinerário do dia e formula com os lábios imóveis: não vai dar. Hoje não. Tem um compromisso. Não gostaria de ter, passou a semana inteira antecipando e se torturando e finalmente chegou a hora e gostaria de ficar em casa e beber o chá e acariciar o gato até bater a vontade de fazer outra coisa, mas tem um compromisso e vai de uma vez para acabar logo com isso. Tudo bem. Ela vai.
        Sente os dedos da mão latejantes ao apertar o botão do térreo. Uma senhora abre a porta um andar abaixo só para cumprimentar e dar uma advertência pelo barulho tarde da noite. Elaine e o namorado andam passando dos limites, precisam moderar. No sétimo andar, um casal gay faz menção de entrar, mas desistem diante do elevador abarrotado.
        Mais cedo no trabalho Elaine bateu numa menina de cabelo colorido. Elaine é pugilista profissional peso pena e instrutora numa academia próxima ao prédio onde mora no centro. Ela bate em meninas profissionalmente e ensina a bater também. E gosta do que faz. O cabelo da menina em que ela bateu durante boa parte da manhã esvoaçava para um lado e para o outro e com a luz dos refletores refratada no suor que respingava para todos os lados as duas cores pareciam três, quatro—ela chegou a contar sete uma hora, como num arco-íris, se bem que os esteroides… Agora, na rua, à procura de um táxi, elas se cruzam e se cumprimentam amavelmente. Sem rancores. Sem mágoas. Nada além de um olho roxo e dores pulsantes pelo corpo.
        Sempre há taxis disponíveis no Círculo Militar. Ela anda até lá e entra em um carro mais ou menos moderno. A mão dói ao puxar a porta para bater. A mão dói depois também. Durante a viagem ouve uma história no rádio. De um jovem que praticava atletismo. Ele tinha começado cedo. Foi inspirado ou pela morte do pai, ou pelo simples medo da morte. O pai morrera do coração com trinta e um anos. Ele mal lembrava. Só sabia que, desde que descobrira que o mal do pai era genético, tinha na cabeça que ia fazer de tudo para evitar morrer da mesma causa. No caminho ele virou atleta olímpico — Atenas, 2004, participação modesta. De resto, tinha família, uma boa carreira de escritório, cachorro e mãe viva e comida na despensa e na verdade todos os contornos de uma vida satisfatória… Até que completou trinta e um anos. Daí aconteceu alguma coisa. Em rápida sucessão, ele perdeu o emprego, se livrou da mulher, abandonou os filhos, começou a beber. Ficou na sarjeta. Antes de completar trinta e dois estava morto. Parada cardíaca. Morreu no frio do inverno curitibano, embaixo do viaduto do Capanema. Engraçado, o taxista acha. Vê como é a vida. Elaine sorri em resposta.
        Desce na Rui Barbosa em plena hora do rush e segue até a autoescola. Pega uma senha e espera. Espera interminavelmente. Das três atendentes, apenas uma está disponível para conversar com os alunos já matriculados. As outras duas recebem os que ainda não se inscreveram, repassam informações, preenchem formulários e conversam entre si. Na sala de espera todo mundo assiste calado o Jornal Hoje em HD. Elaine se inquieta, pega um café de um real na máquina. Já vem adoçado; ela joga o copo cheio no lixo. Ela é chamada ao último guichê no meio do Vídeo Show, André Marques em carne, gordura e osso falando qualquer coisa sobre qualquer coisa.
        Elaine pede uma reposição de aula. A atendente digita qualquer coisa e olha para a tela do computador. Ela parece o André Marques. Ao cabo de alguns instantes a atendente assume um tom bovino para informar que o prazo inicial já passou; agora, para marcar reposição, Elaine vai ter que pagar uma taxa de cento e setenta reais.
       — Mas foi por causa da autoescola que eu passei do prazo, vocês demoraram para marcar o meu teste, depois demorou mais um mês para marcar a primeira aula, daí é lógico que eu vou perder o prazo?
       — Sim senhora Elaine, a senhora tem razão, mas eu não posso fazer nada, é o sistema, quando passa do prazo ele trava e eu não posso fazer nada…
        Elaine pede para falar com o gerente. De uma porta de fórmica surge uma loira oxigenada meio gorducha de calças justas e top branco escritorial. Ela chama Elaine a uma sala reservada para conversar.
       — Por favor, por aqui.
        Elaine argumenta. A gerente contra-argumenta. Elaine diz que aquela é a autoescola mais cara da cidade, e a pior também. A gerente nega. Alega conhecimento de causa. Ela tem a vantagem do cinismo. A mão de Elaine lateja. Começa a coçar. Podia bater na gerente se quisesse. Mas daí seria um escândalo. Um escândalo verbal pelo menos tem que ter. Elaine fala mais e mais alto. A gerente faz ela notar que elevou o tom de voz. Elaine grita que pelo menos não tem a voz fina. A gerente pede para ela repetir. Ela repete: voz fina, voz fina, voz fina. A gerente pede para falar mais baixo, vai todo mundo ouvir. Melhor que ouçam mesmo, que ninguém que está ali fora cometa o erro de se matricular nessa autoescola de merda. Enfim. Elaine sai dali vencedora: vai pagar uma taxa reduzida. Nunca mais quer voltar a ver a cara daquela gente, o que vai ser impossível, ainda vai precisar marcar o teste prático… Mas tem um certo orgulho nessa vergonha. Pelo menos sente que lutou pelo que é certo.
        O gato a espera no apartamento com um sorriso. O gato sorri para ela com o corpo inteiro. Só olhar para ele já é ganhar um carinho. O gato é a vida e a glória. Elaine deita com ele, que sobe na barriga dela e faz uma massagem de gato. Depois de um cochilo vai dar uma caminhada pelo centro, comprar algumas coisas, encontrar os amigos, beber uma cerveja.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

38. Nos jardins do palácio

Nos jardins do Palácio do Governo eu sentei e chorei. Acabara de estacionar o carro em Local Proibido. Veronika vasculhava a área em busca de vagas, toda ela pernas e meias sob a saia plissada. Era um dia bonito, o gramado se estendendo ondulante qual uma peça de tapeçaria de mau gosto que algum Funcionário Público deve ter visto na tevê, dividido em oito círculos por caminhos de piche cuidadosamente superfaturados. No centro de dois deles havia monumentos: duas placas metálicas pregadas por sabe-se lá que materiais a trapezóides de concreto pintados de branco, homenagem a amigos íntimos de saudosos Governadores.
       O Palácio do Governo se encontrava circundado por tapumes marrons. “Fechado pra reforma”, disse um Operário, não sem antes nos ter visto cruzar vasto deserto na direção daquela magnífica porta dupla semovente de vidro fosqueado atrás da qual, hoje, Burocratas não digitavam. “Desculpa, não vi vocês,” continuou, “tá fechado. Pra reforma.” Ironicamente, havia na quadra seguinte, direção Mateus Leme, um prédio de proporções reduzidas comparadas às do Palácio do Governo – as letras placas metálicas pregadas nas quatro faces laterais do paralelepípedo, Central Oftalmológica. Cabe perguntar se, em outras condições, sugeriríamos brandamente uma consulta?
       Dirigimo-nos com alegria ao prédio que o Operário nos indicara. Situado à margem oposta do jardim amebóide, ele parecia luzir por força própria, o que não nos espantou em vista do tempo que demorara para ficar pronto. Trata-se de mais uma obra-lavagem; as cidades estão cheias delas: basta olhar e calcular com o canto da consciência que, se este prédio demorou quinze anos para se erguer, mas na verdade foi construído inteiramente só ao longo da última semana, então...
       Os formulários preenchidos, a esperança, as canetas-tinteiro. Atravessamos a ponte sobre o fosso em que cascavéis sibilavam e adentramos o salão principal daquele prédio. Duas Atendentes idênticas atendiam ao balcão. Foi à mais bonita que me dirigi. Saímos de lá quarenta minutos mais tarde. Se antes portávamos canetas e formulários, portávamo-los agora em dobro. Se antes tínhamos esperanças, estas não se haviam de abalar por conta do equívoco. Mandaram-nos ao prédio errado; o que devíamos procurar era, na verdade, o do Ministério Público, localizado a uma quadra de onde o prédio de nossa residência (bloco monolítico bege, tão belo!, crianças no parquinho) ficava, em frente ao restaurante vegetariano.
       Tomei do volante do carro e nos colocamos imediatamente a caminho. O Museu do Olho nos ofereceu o estacionamento, que nós aceitamos com gratidão e promessas de retorno aos domingos. Descemos os degraus intermináveis a céu aberto e ali estávamos, hesitantes entre dois edifícios negros de trinta andares. Escolhemos o da direita; informaram-nos do erro; repensamos então a escolha só para descobrir, minutos mais tarde, que não era tampouco este o prédio que procurávamos. De fato, não era ao Ministério público que devíamos nos ter dirigido, mas antes ao Tribunal de Justiça. Onde ficava tal construção? “Logo ali.” “Logo ali onde?” Achei por bem perguntar à solícita Servidora Pública que nos atendia. Ao que ela tomou de papel e caneta esferográfica para desenhar, toda ela boa-vontade, um mapa que não entendemos. “Ah, sim,” dissemos, “ah sim, sim, é claro, obrigado,” e saímos catracas afora antes que nos achassem suspeitos.
       Não havia vagas por perto, sendo a rua muito estreita; de modo que fomos encontrar estacionamento a uma praça situada a dez quadras dali, a partir de cujo centro verdejante dois homens de meia-idade chapados se encarregavam da vigilância. Trocamos calorosos cumprimentos antes de seguir viagem, agora a pé, munidos sempre de formulários, canetas e esperança. Veronika estava cansada: gemia, cabeceava, tornava a gemer. “Malditos burocratas,” disse a certa altura. Tendo entendido “democratas”, estranhei-a por alguns momentos; após o que me dei conta do erro.
       Prosseguimos com passo firme.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

37. Minas Gerais

Eles estão controlando por meio da água. Não querem que você perceba. As portas secretas do modem abertas. Entram e saem à vontade. O túnel subterrâneo também chamou atenção. Instalou-se um inquérito. O inquérito levou anos, ao cabo dos quais ninguém lembrava. Quando chegou à abertura do processo a história já era outra coisa: o cartel dos restaurantes de fachada, à frente de um dos quais este repórter presenciou o prefeito fumando um charuto. Segui-o até a casa em que travestis esquerdistas esperavam em robes azuis e brancos, nuazinhas por baixo. Infelizmente, o cachorro comeu a minha câmera. E você se pergunta: será a vida real? Não será só videogame? E outras coisas.
       Um garçom que olhou torto e falou manso. Trouxe comida, provavelmente envenenada. A garota que parou e se inclinou para pegar conchas é a de vestido verde é a que esteve naquele protesto televisionado semana passada. Apanhou de um bando. Mas o rosto disforme em close-up é o de outra pessoa. De um homem. Conheço ele. Será mesmo? E do meio das balas de borracha, boato que viram a cara de um d'Eles. Estavam distantes, na linha do horizonte, enfileirados e de costas, como que prontos para a geral. Ele se virou bem na hora que eu olhei, depois enfiou a cabeça por dentro da gola da camiseta, feito uma tartaruga. Quis continuar olhando. Prestando atenção. Os zunidos no ouvido e o gosto da lama falaram mais alto, sem falar no aumento do plano de saúde.
       Ontem me ligaram de Minas Gerais outra vez.

terça-feira, 17 de julho de 2012

36. Trecho de Nog, romance de Rudolph Wurlitzer que estou traduzindo

         Peguei carona para São Francisco.
         Fui deixado próximo a um supermercado. Estava escuro. Fiquei confortavelmente parado, olhando para as luzes de neon, mas eu precisava de uma direção, da pista de algum hábito identificável, de um movimento de alguma espécie. Um lugar em que pudesse ficar parado, mas ao mesmo tempo parecer ocupado. Não tenho memórias, apenas vagos símbolos de separações: uma mesa de cozinha virada, um lençol rasgado, um navio de guerra naufragado e abandonado no fundo de uma banheira. Entrei no supermercado. Os corredores estavam lotados de clientes noturnos. Música de elevador. Me esgueirei para as cores quentes e os cliques das caixas registradoras. Tentei me lembrar, perto das comidas congeladas, estou tentando me lembrar do que é que tentei me lembrar, mas eu tinha esquecido por que era mesmo que eu tinha entrado, por que era mesmo, precisamente, que eu tinha que sair. Empurrei o carrinho pela extensão de um corredor e de metade de outro. Peguei uma lata de feijão. Devo ter pegado uma lata de feijão, porque me lembro de ter devolvido uma lata de feijão à prateleira e de ter pegado outra coisa, um saco de feijão. Coloquei o saco de feijão próximo a latas de frango xadrez e vegetais e Pet Milk. Depois, finalmente, consegui ficar com duas latas de atum. Alguma coisa foi proclamada. Uma refeição. Maionese e cebolas e atum em Londres, Nova York ou Palma. Não importa. Coloquei as duas latas de atum no carrinho e o empurrei por entre brinquedos de plástico, lâmpadas e material elétrico. Detive-me por alguns minutos diante de um abridor de latas vermelho. Coloquei-o no carrinho e continuei empurrando. Parei perto de um frigorífico, o olhar travado num conjunto de dedos delicados que enfiava uma bandeja de costeletas de cordeiro no bolso amplo de uma capa de chuva amarela. A capa estava desabotoada. Dentro havia um vestido com estampas de flores de um azul desbotado. Os loiros e bastos cabelos corriam soltos até a cintura. As pernas curtas eram esquisitas nos joelhos, meio que tortas, mas a postura geral era suficientemente vulnerável para despertar interesse. Sapatos vermelhos de plástico com bicos atarracados cobriam os pés. Observei os dedos dela depositarem calmamente costeletas de porco num cesto de palha, acompanhadas de perto por um bom tanto de acém. Concentrei-me nas comidas do meu carrinho e dei um empurrão nele, que foi repousar contra as coxas dela. Ela se virou. Não consigo enfocar o seu rosto; tinha feições amplas e saudáveis, sem dúvida encantadoras, digamos encantadoras, mas eu não sei como começar, como abordar o nariz pequenino e teimoso, os lábios cerrados, os olhos esmorecem, eles olham para mim esmorecentes, e o meu próprio olhar ficou vidrado. Comecei num ponto entre os olhos dela. Ela não sorriu nem demonstrou surpresa alguma, talvez porque não houvesse nenhum traço de movimento no meu rosto, ou é o que eu pensava. Já estive enganado a este respeito. Ela deu um passo para o lado lenta e deliberadamente, como se completasse um movimento numa dança formal. Ficou parada na frente dos frios. Eu também me coloquei em movimento, como se respondesse ao mesmo maestro, alcançando uma posição em frente aos peixes, à direita dela. Apanhei um linguado, segurando-o por tempo suficiente para que encobrisse a minha mão. Depois enfiei o linguado por baixo da camisa. Ele estava especialmente frio, mas eu fiquei quieto. Ela seguiu em frente e eu segui em frente, sem saber se eu estou seguindo ela ou se ela está me seguindo ou se de algum modo nos movemos paralelamente um em relação ao outro. Parei para pegar um vidro de corações de alcachofra, que coloquei no bolso da minha jaqueta. Quando olhei outra vez, ela tinha desaparecido. A separação não é aguda. Pelo menos pude ocupar, por um breve momento, uma posição amistosa e distanciada à frente do balcão de carnes. Eu estava quieto, mas tenho pensado e suspeitado do silêncio já faz um bom tempo. Há certos momentos, após um estranhamento, em que o meu pau se encolhe para dentro do corpo. Não, não é isso. Não tem nada a ver com isso. Mas passou perto. Eu devia ter encurralado ela com o carrinho e metido nela enquanto ela se curvava sobre o balcão. O resto não importa. É possível que ela não tenha percebido. Ela não percebeu. A neutralidade deve ter sido a sedução. Continuei empurrando, enchendo o meu carrinho com suco de laranja, leite, ovos e queijo. Comidas sem cheiro, frias ao toque. Os olhos dela tinham sido muito azuis, como se fitassem a distância, assim como os de Nog. (Olhos que conheci.) Mas os olhos dela eram apagados, esmorecentes. As memórias virão, vêm vindo, listas de separações, de chegadas. Não tem pressa. Nog não desapareceu. Só a memória sobrevive. Os olhos obtusos dela refletiam uma jornada, nem que fosse só pela carne, mesmo assim uma jornada. E Nog está numa jornada de caminhada obsessiva e sono em pisos trincados entre cobertores mascados por cães. Não consigo ver além disso. Ela tinha ido embora, não me engano quanto a isso, mas alguma coisa houvera, ou pelo menos reparara-se em algo. Não um entendimento, não estou tomado por emoção tal que me permita suspeitar um entendimento, mas talvez uma paranoia, uma paralisia compartilhada, uma delicada e contida… Não importa. Tornei a encontrá-la em outro corredor. Reparei em dois abacates e uma cabeça de alface no carrinho dela. Peguei um vidro de coquetel de carne de camarão, duas latas de ostras defumadas e uma lata de salada com frango em que eu não tinha nenhum interesse particular. Lembro ter enchido ambos os bolsos das calças com molho tártaro, cebola desidratada e páprica. Eu não ignorava completamente que aquilo podia ser uma armação para o meu lado, que eu podia ser dedurado para me marcarem ou prenderem ou algo assim. Abandonei tudo no carrinho mais próximo, exceto por dois tabletes de manteiga, uma vasilha de leite e um vidro pequeno de corações de alcachofra. Mantive o linguado dentro da camisa. A umidade me mantém afinado, focado na tarefa a cumprir, na possibilidade de uma progressão, na esperança de que haja, com efeito, uma tarefa. Dirigimo-nos aos caixas. Eu estava aberto, pronto para que ela se revelasse, para que se mexesse para frente ou para trás, para que caçasse ou fugisse. Continuo aberto, parado, como que no aguardo de alguém ou algo. Mas era meio confuso, as pessoas viravam borrões, os corredores sem fim, quase circulares, a comida subitamente animada, campos de latas de café acenando, fileiras de limões suarentos e alfaces em expansão, pilhas vacilantes de bananas e doces industriais e um amontoar-se da comida do meu próprio carrinho, como que procurando se aquecer, minúscula e temerosa. Eu estava na fila do caixa, abrindo caminho, empurrando um delirium tremis para lá, e nada acontecia. Paguei, agradecido, e ela pagou também, bem na minha frente, por um pé de alface e dois abacates, os bolsos dela abarrotados, o cesto de palha cheio e o enorme espelho em cima refletindo tudo. Mas depois estávamos na rua. Tudo acaba encontrando oportunamente o caminho da rua. Andamos. Ela parou no meio de um estacionamento e deixou a mão mole se encaixar na minha. Beijando o lóbulo de uma orelha, ela confessou que, só para se manter em forma, para se manter no controle, por assim dizer, ela às vezes oferecia os seus serviços aos gerentes de dois supermercados.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

35. Primeiro sonho com a minha mãe, um conjunto de casas vermelhas e Naphta, o jesuíta

Costurei um pano no rosto da minha mãe, que o sol horizontal ardia nos olhos, e andamos juntos até o conjunto de casas baixas espalhadas pelo loteamento de três hectares. Tivemos oportunidade de ver tudo da colina: a planta das construções era perfeitamente quadrada, assim como a do terreno em que repousavam. Conjugado ao esquema de cores da cena—todas as casas vermelhas, o chão ocre, o ar amarelo e agora apenas o fantasma alaranjado do disco solar—, o espaçamento regular entre as construções conferia ao assentamento um aspecto de cidadela de blocos de montar. Dentro daquelas casas cometiam-se atrocidades, cada quitinete reservada a uma modalidade específica de prática indizivelmente obscena. Isso era tão claro quanto impronunciado. Chegada a hora, o pano costurado no rosto da minha mãe ajudaria a não ver nada.
       Ninguém passava pelos corredores áridos formados pelas paredes separando o dentro do fora. Não se via ninguém além de nós e ninguém assomou à janela ao enveredarmos pelo labirinto.
       Entramos numa das casas. A primeira coisa que me capturou a atenção foi o fato de que o interior da casa era grande demais para caber dentro dela. Um corredor escuro, de paredes caiadas, ia em linha reta do começo ao fim do prédio. Agora, tratava-se de um prédio. As portas, distribuídas simetricamente ao longo do corredor, eram de um material metálico completamente encoberto pela ferrugem. Na porção superior, vidros fumê permitiam entrever a claridade ou a penumbra dos aposentos.
       Enquanto avançávamos pelo corredor, reparei em que o pano que recobria o rosto da minha mãe já parecia ser outra coisa—estava mais para tela ou lenço, um lenço de seda preto estampado com um grande losango azul marinho. Filigranas douradas se inscreviam no azul. Talvez fosse mesmo uma tela ou um painel eletrônico, pois as filigranas emanavam um brilho dourado cambiante—agora vindo das do canto esquerdo, que logo desapareciam e tornavam a aparecer embaixo, no canto do olho ou na blusa, que se tornara também azul marinho ou sempre o fora e eu não percebera antes. Logo eram as do centro que brilhavam e procediam a girar em torno do próprio eixo e repousavam inertes imediatamente depois da gente piscar, como se a coisa toda pudesse ter sido apenas fruto de um movimento involuntário da cabeça da minha mãe. Por meio das depressões no tecido eu adivinhava que o rosto dela passara por uma transformação substancial. Tornara-se não apenas outro rosto, mas outra coisa por completo.
       Para aliviar o meu estranhamento, quis remover o lenço, mas ela obstou a que eu tocasse nele. Disse que estava muito frio, preferia ficar assim mesmo; além do mais o negócio estava costurado, fio azul perpassando o pescoço e recobrindo a linha dos cabelos, e eu não tinha tesouras para rompê-lo sem causar a dor que ela sentiria se eu simplesmente puxasse o lenço; assim fazendo, o mais provável era que a sua pele fosse arrancada com o pano, e aí sim é que a coisa ia ser feia…
       Bati à quarta porta do lado direito do corredor. Sem resposta. Dirigimo-nos então à próxima, ainda do lado direito. Verifiquei que estava destrancada. Entrei e olhei para trás ao sentir que a minha mãe ou quem quer que fosse tinha desaparecido com as suas filigranas.
       Sozinho no aposento, sentei-me na cama para esperar. Caí no sono. Quando acordei, olhei para os pés da cama e vi um espelho de corpo inteiro. Nele estavam enquadrados o meu rosto e o de Naphta, o jesuíta radical de Thomas Mann. Levantei da cama e observei que o meu rosto desaparecia da superfície do espelho, mas não o de Naphta, cujo corpo tomava forma, passando a ocupá-la inteira. Ele carregava um arco que emitia um brilho dourado como o das filigranas, com o qual atirou uma flecha de luz que fez o vidro em cacos.

terça-feira, 26 de junho de 2012

34. Pfutz

é a representação bidimensional, talhada em papelão e tingida em cores vivas, de um ser humano aprisionado numa esfera maciça de vidro. Não come, dorme, ama ou sonha; apenas fica em pé, a maior parte do tempo, absorto pela massa dura do objeto que repousa sobre quatro apoiadores de silicone fixados à superfície vítrea de um tampo de mesa. Os pés dessa mesa são de madeira em pátina branca, de modo que Pfutz é a única coisa colorida desta imagem construída a duras penas.
       Quando não está em pé, estático, Pfutz rola. Dificilmente é colocado de volta sobre o apoiador em posição horizontal em relação ao tampo da mesa. De ponta-cabeça, sim, é possível. Já passou dias assim, o que pareceu uma heresia ao dono da mesa, que nutre por ele ou pelo objeto de que ele faz parte uma afeição profunda, cujas origens nos permanecerão misteriosas.
       As cores em que Pfutz está pintado são: o roxo, o amarelo e o azul turquesa. A cabeça é roxa devido à falta de ar; a camisa é amarela por nacionalismo; as calças são azul turquesa por força de circunstâncias mais ou menos alheias à vontade do seu criador. Antes de ter início a confecção de Pfutz, havia muitas outras opções de cores para as calças; mas durante o processo, a criança ficou curiosa e comeu todas elas, uma por uma, direto da bisnaga, pelo que foi levada ao hospital com sintomas de intoxicação alimentar. Quando deu por si, já estava em casa. Via e andava torto. Não se perguntava o que tinha acontecido. Só sentia dentro de si um vazio que, mais experiente que antes, preferiu preencher com leite e bolachas. A vida correu. Meses depois da intoxicação, a professora lhe perguntou por onde andava Pfutz. O filho do dono da mesa não soube o que responder. Procurou por tudo, sem encontrar; foi dar com o pedaço de papelão todo umedecido no bolso do macacão azul turquesa que não tornara a usar até então só mais pro fim do semestre, daí a cor das calças de Pfutz.
       Em seguida ele foi entregue à professora, que tratou de o colocar na pilha dos bonecos de papelão confeccionados pelas crianças ao longo do ano. Próximo à época do natal, Pfutz e seus amigos foram enviados via pessoal da administração ao vidraceiro da quadra seguinte ao colégio. Lá um homem de barba grisalha por fazer aprisionou todos eles nas esferas de vidro. Foram então encaminhados por correio aos pais das crianças, que os receberam na antevéspera do natal. Logo que viram o pacote com um selo estampado por uma miniatura em cores do famoso retrato a óleo de Marcelino Champagnat, os pais entenderam por que é que estavam recebendo aquilo aquela hora aquele dia. Sem, no entanto, compreender a crueldade inerente ao Sistema.
       Não mais misteriosas, portanto, as origens da afeição do dono da mesa pelo objeto de que Pfutz é parte. Tanto menos se considerarmos a situação de quase-morte por que passou o filho do dono da mesa. Quase-morte na imaginação do pai dele, pelo menos.
       É o pai o ser humano representado ali dentro, preso ou simplesmente paralisado pela massa inamovível da esfera de vidro. Emocionado, ele a toma com a mão esquerda enquanto leva a caneca de café forte aos lábios com a direita. Olha para Pfutz e pensa em seu filho. Uma lágrima é expelida pela glândula lacrimal correspondente à fossa lacrimal da cavidade ocular direita do dono da mesa em que Pfutz costuma repousar. Como sempre, Pfutz está roxo. É então cuidadosamente recolocado sobre os apoiadores de silicone.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

33. Visões do Grande Autor

O Grande Autor vai à feira, onde é reconhecido por aproximadamente um quarto das Pessoas Comuns. A partir da entrada mais ao norte, percorre o território todo, detendo-se em cada uma das barracas para apreciar a mercadoria. O seu olhar é perscrutador. O seu pensamento trabalha. A sua boca se move de quando em quando: “Excelentes batatas!” Ouvimo-lo dizer; ou então: “Deploráveis peças de arte com areia!” As Pessoas Comuns aprovam esses veredictos, ou pelo menos consentem silenciosamente. Ao cabo de meia hora, já no caminho de casa, a Família inteira concorda: “Excelentes batatas! Deploráveis peças de arte com areia!”
       As únicas peças de arte com areia que o Grande Autor aprova são os trípticos.
       O seu cabelo toca os ombros. É talhado no formato de um penico e seus fios compõem uma superfície lisa de cor clara, castanho puxando para o loiro. Os reflexos do sol nesse cabelo fazem pensar em madeira de jequitibá. A franja bem comprida acaricia e encobre boa parte das sobrancelhas. Estas conferem ao rosto um ar de tristeza. Olheiras grandes demais englobam os olhos azuis grandes demais. O nariz fino desce até quase tocar a boca, que não passa de um risco rosado conectando as bochechas. Isso tudo o observador perceberá se chegar bem perto, e terá a impressão de estar lidando não apenas com um Grande Autor, mas talvez—quem sabe?—com um Grande Homem, um Homem À Moda Antiga.
       Afastando-se, no entanto, a coisa mudará de figura. A cabeça imponente do autor revelar-se-á apenas grande. O capacete de cabelo, desproporcional ao talhe do corpo. O corpo mirrado porém pançudo escondido sob roupas de cores burguesas (“Liberdade, Igualdade, Fraternidade!”). Tendo olhado para trás ao se afastar, o observador reformará a sua impressão inicial e dirá algo como: “Eu tinha mesmo reparado que ele fala como um mongoloide.”
       Não que não fale. Uma das particularidades do Grande Autor é a sua grandiloquência. Isso não ficaria tão mal se não tivesse a língua presa. “Effelenteff batataff!” “Deploráveiff peffaff de arte com areia!”
       Ele se consulta semanalmente com a Dra. Cris, fonoaudióloga. A Dra. Cris está cansada dele. “Você não precisa falar assim,” ela diz ao término das sessões, “você só fala assim porque quer.” Secretamente, a Dra. Cris acredita que o Grande Autor está apaixonado por ela. Pequenos sinais lhe dão a entender. Referências veladas em contos esparsos. O seu nome apropriado. A sua persona adaptada ao caráter redondo do personagem de um romance. No entanto, o Grande Autor não sabe que a Dra. Cris se chama assim. Crê ter tirado o nome do éter onde busca inspiração para escrever todas as suas histórias. Secretamente, ele só insiste em falar com a língua presa porque acha charmoso.
       Além da língua presa, há o problema do ponto e vírgula. Ele o pronuncia mediante longo silêncio. Nos lugares errados. Chega a separar sujeito e predicado. Alto lá; lá vem metade de um complemento. Interrompe mesmo nomes compostos, impingindo-lhes tão execrável adorno. Não contente, interrompe os interlocutores com o dedo em riste, consentindo que continuem após ter se dado por satisfeito segundo critérios menos arbitrários que pessoais e insondáveis. 
       Mencione-se ainda que, quando ele fala em itálico, é evidente que está falando em itálico.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

32. Informe aos moradores

Teotihuacán, 18 de fevereiro de…

       Informamos por meio desta que a administração está muito contente com a situação do Palácio de Quetzalcóatl, em cujos murais ladeando a entrada as defasadas gravuras de jaguares foram substituídas por um lindo painel composto pelas crianças da Escola Experimental Texcoco.
       Informamos ainda que os moradores do Sítio Arqueológico de Teotihuacán devem tomar muito cuidado, pois semana passada a moradora Ruth de Castro, residente à Pirâmide da Lua, 34B, informou à síndica ter avistado três sujeitos de provável origem extraterrestre rondando os gramados adjacentes ao seu condomínio. Embora todos saibamos em que estado geralmente é possível encontrar a referida moradora após o horário do chá de peiote comunitário, cumpre lembrar que a frequência de detecção de "luzes estranhas" nos céus da nossa comunidade vem aumentando solidamente ao longo dos últimos séculos, sinal que sempre tem precedido um período de mortalidade acentuada, bem como desaparecimentos em série.
       Numa última nota, pede-se atentar ao fato de que o Sr. Duque Hernán Cortez, outrossim conhecido como Deus Quetzalcóatl, fica terminantemente proibido de utilizar as águas do Templo para fins de higiene pessoal, em cumprimento do disposto em orientação normativa elaborada por ordem direta de Vossa Excelência, o Imperador Montezuma.

Gratos pela compreensão,
a Administração.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

31. Som na caixa

A cabeça justaposta às de outras duas mil pessoas, todos os rostos em alta definição, passíveis de zoom e tratamento digital das cores. Dentro desta caixa os sons reverberam longamente. O calcanhar de um range algumas centenas de vezes e alguém pede que se faça silêncio, o que suscita uma infindável troca de olhares entre o público, cada um interceptando a mirada de cada outro pelo menos uma vez a cada cinco minutos.
       No centro de tudo a pianola. Um homem grisalho sentado à frente dela, imóvel, não mais quando tira do bolso um celular. Faz uma ligação para o homem posicionado na outra extremidade do palco, cujo telefone toca em vão. Ele só faz menção de atender quando o último toque termina de ecoar. Então afeta agastamento, o que dá a entender por meio de um ligeiro franzir do cenho, e com um gesto abrupto atira o aparelho ao público. O toque vai sendo absorvido pelas duas mil cabeças ao longo da próxima meia hora. Entretanto ninguém se move.
       Desnecessário mencionar os ruídos aparentemente aleatórios gerados pelos corpos. Ranger do calcanhar apenas um exemplo. Ninguém diz nada. Nem sequer se sabe se as vozes sairiam (pedidos de silêncio meros sopros africados). Tentar qualquer gesto no sentido de descobrir seria atentar à integridade do espetáculo. A própria reprimenda ao ranger dos calcanhares acaba gerando confusão. Mais reprimendas, e logo mais rangeres. Os pescoços estão tensos. Os ombros estalam. Alguém emite um bocejo surdo. O círculo vicioso só é interrompido por instantes difíceis de detectar, e mesmo estes relativos. Pois do exterior da caixa os alcançam as sombras de palavras, às vezes frases inteiras. Versam sobre comida, mormente. Mais raro o tema da doença.
       A caixa é um apartamento ou um auditório situado dentro de outra caixa maior. Os estímulos visuais proporcionados pelo espetáculo não ficam atrás dos sonoros nem em intensidade, nem em qualidade. Há muita coisa para ver lá dentro. Os olhos, por exemplo. O entreolhar coletivo supramencionado e outros olhares, carregando outros significados. Cada olhar flagrado é intimamente computado e colocado à parte, em sua respectiva caixa, para análise posterior. Além dos olhos e olhares, é possível distinguir, ao fundo do palco, um padrão semovente projetado por alguém lá de cima. Deste padrão pouca coisa se depreende. Uma delas é o espaço, o espaço não ocupado pelas imagens projetadas, que se descortina enorme aos olhos de quem quer que o abarque imediatamente depois de desviar os olhos para a pianola.
       A pianola é bem vistosa,
       Os músicos passam a produzir ruídos que fazem desacelerar o tempo. Comprimem em minutos o que a mera contemplação da pianola faria parecer dias. Intuir daí a supremacia hierárquica do ouvir em relação ao olhar um caminho silogístico perigoso. Pressupõe que tempo bom é tempo gasto. O perigo é imediatamente suplantado pela compreensão de que tentar pensar (continuar pensando) nisso seria prejudicial à apreciação da peça.