segunda-feira, 2 de julho de 2012

35. Primeiro sonho com a minha mãe, um conjunto de casas vermelhas e Naphta, o jesuíta

Costurei um pano no rosto da minha mãe, que o sol horizontal ardia nos olhos, e andamos juntos até o conjunto de casas baixas espalhadas pelo loteamento de três hectares. Tivemos oportunidade de ver tudo da colina: a planta das construções era perfeitamente quadrada, assim como a do terreno em que repousavam. Conjugado ao esquema de cores da cena—todas as casas vermelhas, o chão ocre, o ar amarelo e agora apenas o fantasma alaranjado do disco solar—, o espaçamento regular entre as construções conferia ao assentamento um aspecto de cidadela de blocos de montar. Dentro daquelas casas cometiam-se atrocidades, cada quitinete reservada a uma modalidade específica de prática indizivelmente obscena. Isso era tão claro quanto impronunciado. Chegada a hora, o pano costurado no rosto da minha mãe ajudaria a não ver nada.
       Ninguém passava pelos corredores áridos formados pelas paredes separando o dentro do fora. Não se via ninguém além de nós e ninguém assomou à janela ao enveredarmos pelo labirinto.
       Entramos numa das casas. A primeira coisa que me capturou a atenção foi o fato de que o interior da casa era grande demais para caber dentro dela. Um corredor escuro, de paredes caiadas, ia em linha reta do começo ao fim do prédio. Agora, tratava-se de um prédio. As portas, distribuídas simetricamente ao longo do corredor, eram de um material metálico completamente encoberto pela ferrugem. Na porção superior, vidros fumê permitiam entrever a claridade ou a penumbra dos aposentos.
       Enquanto avançávamos pelo corredor, reparei em que o pano que recobria o rosto da minha mãe já parecia ser outra coisa—estava mais para tela ou lenço, um lenço de seda preto estampado com um grande losango azul marinho. Filigranas douradas se inscreviam no azul. Talvez fosse mesmo uma tela ou um painel eletrônico, pois as filigranas emanavam um brilho dourado cambiante—agora vindo das do canto esquerdo, que logo desapareciam e tornavam a aparecer embaixo, no canto do olho ou na blusa, que se tornara também azul marinho ou sempre o fora e eu não percebera antes. Logo eram as do centro que brilhavam e procediam a girar em torno do próprio eixo e repousavam inertes imediatamente depois da gente piscar, como se a coisa toda pudesse ter sido apenas fruto de um movimento involuntário da cabeça da minha mãe. Por meio das depressões no tecido eu adivinhava que o rosto dela passara por uma transformação substancial. Tornara-se não apenas outro rosto, mas outra coisa por completo.
       Para aliviar o meu estranhamento, quis remover o lenço, mas ela obstou a que eu tocasse nele. Disse que estava muito frio, preferia ficar assim mesmo; além do mais o negócio estava costurado, fio azul perpassando o pescoço e recobrindo a linha dos cabelos, e eu não tinha tesouras para rompê-lo sem causar a dor que ela sentiria se eu simplesmente puxasse o lenço; assim fazendo, o mais provável era que a sua pele fosse arrancada com o pano, e aí sim é que a coisa ia ser feia…
       Bati à quarta porta do lado direito do corredor. Sem resposta. Dirigimo-nos então à próxima, ainda do lado direito. Verifiquei que estava destrancada. Entrei e olhei para trás ao sentir que a minha mãe ou quem quer que fosse tinha desaparecido com as suas filigranas.
       Sozinho no aposento, sentei-me na cama para esperar. Caí no sono. Quando acordei, olhei para os pés da cama e vi um espelho de corpo inteiro. Nele estavam enquadrados o meu rosto e o de Naphta, o jesuíta radical de Thomas Mann. Levantei da cama e observei que o meu rosto desaparecia da superfície do espelho, mas não o de Naphta, cujo corpo tomava forma, passando a ocupá-la inteira. Ele carregava um arco que emitia um brilho dourado como o das filigranas, com o qual atirou uma flecha de luz que fez o vidro em cacos.

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