segunda-feira, 13 de agosto de 2012

38. Nos jardins do palácio

Nos jardins do Palácio do Governo eu sentei e chorei. Acabara de estacionar o carro em Local Proibido. Veronika vasculhava a área em busca de vagas, toda ela pernas e meias sob a saia plissada. Era um dia bonito, o gramado se estendendo ondulante qual uma peça de tapeçaria de mau gosto que algum Funcionário Público deve ter visto na tevê, dividido em oito círculos por caminhos de piche cuidadosamente superfaturados. No centro de dois deles havia monumentos: duas placas metálicas pregadas por sabe-se lá que materiais a trapezóides de concreto pintados de branco, homenagem a amigos íntimos de saudosos Governadores.
       O Palácio do Governo se encontrava circundado por tapumes marrons. “Fechado pra reforma”, disse um Operário, não sem antes nos ter visto cruzar vasto deserto na direção daquela magnífica porta dupla semovente de vidro fosqueado atrás da qual, hoje, Burocratas não digitavam. “Desculpa, não vi vocês,” continuou, “tá fechado. Pra reforma.” Ironicamente, havia na quadra seguinte, direção Mateus Leme, um prédio de proporções reduzidas comparadas às do Palácio do Governo – as letras placas metálicas pregadas nas quatro faces laterais do paralelepípedo, Central Oftalmológica. Cabe perguntar se, em outras condições, sugeriríamos brandamente uma consulta?
       Dirigimo-nos com alegria ao prédio que o Operário nos indicara. Situado à margem oposta do jardim amebóide, ele parecia luzir por força própria, o que não nos espantou em vista do tempo que demorara para ficar pronto. Trata-se de mais uma obra-lavagem; as cidades estão cheias delas: basta olhar e calcular com o canto da consciência que, se este prédio demorou quinze anos para se erguer, mas na verdade foi construído inteiramente só ao longo da última semana, então...
       Os formulários preenchidos, a esperança, as canetas-tinteiro. Atravessamos a ponte sobre o fosso em que cascavéis sibilavam e adentramos o salão principal daquele prédio. Duas Atendentes idênticas atendiam ao balcão. Foi à mais bonita que me dirigi. Saímos de lá quarenta minutos mais tarde. Se antes portávamos canetas e formulários, portávamo-los agora em dobro. Se antes tínhamos esperanças, estas não se haviam de abalar por conta do equívoco. Mandaram-nos ao prédio errado; o que devíamos procurar era, na verdade, o do Ministério Público, localizado a uma quadra de onde o prédio de nossa residência (bloco monolítico bege, tão belo!, crianças no parquinho) ficava, em frente ao restaurante vegetariano.
       Tomei do volante do carro e nos colocamos imediatamente a caminho. O Museu do Olho nos ofereceu o estacionamento, que nós aceitamos com gratidão e promessas de retorno aos domingos. Descemos os degraus intermináveis a céu aberto e ali estávamos, hesitantes entre dois edifícios negros de trinta andares. Escolhemos o da direita; informaram-nos do erro; repensamos então a escolha só para descobrir, minutos mais tarde, que não era tampouco este o prédio que procurávamos. De fato, não era ao Ministério público que devíamos nos ter dirigido, mas antes ao Tribunal de Justiça. Onde ficava tal construção? “Logo ali.” “Logo ali onde?” Achei por bem perguntar à solícita Servidora Pública que nos atendia. Ao que ela tomou de papel e caneta esferográfica para desenhar, toda ela boa-vontade, um mapa que não entendemos. “Ah, sim,” dissemos, “ah sim, sim, é claro, obrigado,” e saímos catracas afora antes que nos achassem suspeitos.
       Não havia vagas por perto, sendo a rua muito estreita; de modo que fomos encontrar estacionamento a uma praça situada a dez quadras dali, a partir de cujo centro verdejante dois homens de meia-idade chapados se encarregavam da vigilância. Trocamos calorosos cumprimentos antes de seguir viagem, agora a pé, munidos sempre de formulários, canetas e esperança. Veronika estava cansada: gemia, cabeceava, tornava a gemer. “Malditos burocratas,” disse a certa altura. Tendo entendido “democratas”, estranhei-a por alguns momentos; após o que me dei conta do erro.
       Prosseguimos com passo firme.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

37. Minas Gerais

Eles estão controlando por meio da água. Não querem que você perceba. As portas secretas do modem abertas. Entram e saem à vontade. O túnel subterrâneo também chamou atenção. Instalou-se um inquérito. O inquérito levou anos, ao cabo dos quais ninguém lembrava. Quando chegou à abertura do processo a história já era outra coisa: o cartel dos restaurantes de fachada, à frente de um dos quais este repórter presenciou o prefeito fumando um charuto. Segui-o até a casa em que travestis esquerdistas esperavam em robes azuis e brancos, nuazinhas por baixo. Infelizmente, o cachorro comeu a minha câmera. E você se pergunta: será a vida real? Não será só videogame? E outras coisas.
       Um garçom que olhou torto e falou manso. Trouxe comida, provavelmente envenenada. A garota que parou e se inclinou para pegar conchas é a de vestido verde é a que esteve naquele protesto televisionado semana passada. Apanhou de um bando. Mas o rosto disforme em close-up é o de outra pessoa. De um homem. Conheço ele. Será mesmo? E do meio das balas de borracha, boato que viram a cara de um d'Eles. Estavam distantes, na linha do horizonte, enfileirados e de costas, como que prontos para a geral. Ele se virou bem na hora que eu olhei, depois enfiou a cabeça por dentro da gola da camiseta, feito uma tartaruga. Quis continuar olhando. Prestando atenção. Os zunidos no ouvido e o gosto da lama falaram mais alto, sem falar no aumento do plano de saúde.
       Ontem me ligaram de Minas Gerais outra vez.