terça-feira, 17 de julho de 2012

36. Trecho de Nog, romance de Rudolph Wurlitzer que estou traduzindo

         Peguei carona para São Francisco.
         Fui deixado próximo a um supermercado. Estava escuro. Fiquei confortavelmente parado, olhando para as luzes de neon, mas eu precisava de uma direção, da pista de algum hábito identificável, de um movimento de alguma espécie. Um lugar em que pudesse ficar parado, mas ao mesmo tempo parecer ocupado. Não tenho memórias, apenas vagos símbolos de separações: uma mesa de cozinha virada, um lençol rasgado, um navio de guerra naufragado e abandonado no fundo de uma banheira. Entrei no supermercado. Os corredores estavam lotados de clientes noturnos. Música de elevador. Me esgueirei para as cores quentes e os cliques das caixas registradoras. Tentei me lembrar, perto das comidas congeladas, estou tentando me lembrar do que é que tentei me lembrar, mas eu tinha esquecido por que era mesmo que eu tinha entrado, por que era mesmo, precisamente, que eu tinha que sair. Empurrei o carrinho pela extensão de um corredor e de metade de outro. Peguei uma lata de feijão. Devo ter pegado uma lata de feijão, porque me lembro de ter devolvido uma lata de feijão à prateleira e de ter pegado outra coisa, um saco de feijão. Coloquei o saco de feijão próximo a latas de frango xadrez e vegetais e Pet Milk. Depois, finalmente, consegui ficar com duas latas de atum. Alguma coisa foi proclamada. Uma refeição. Maionese e cebolas e atum em Londres, Nova York ou Palma. Não importa. Coloquei as duas latas de atum no carrinho e o empurrei por entre brinquedos de plástico, lâmpadas e material elétrico. Detive-me por alguns minutos diante de um abridor de latas vermelho. Coloquei-o no carrinho e continuei empurrando. Parei perto de um frigorífico, o olhar travado num conjunto de dedos delicados que enfiava uma bandeja de costeletas de cordeiro no bolso amplo de uma capa de chuva amarela. A capa estava desabotoada. Dentro havia um vestido com estampas de flores de um azul desbotado. Os loiros e bastos cabelos corriam soltos até a cintura. As pernas curtas eram esquisitas nos joelhos, meio que tortas, mas a postura geral era suficientemente vulnerável para despertar interesse. Sapatos vermelhos de plástico com bicos atarracados cobriam os pés. Observei os dedos dela depositarem calmamente costeletas de porco num cesto de palha, acompanhadas de perto por um bom tanto de acém. Concentrei-me nas comidas do meu carrinho e dei um empurrão nele, que foi repousar contra as coxas dela. Ela se virou. Não consigo enfocar o seu rosto; tinha feições amplas e saudáveis, sem dúvida encantadoras, digamos encantadoras, mas eu não sei como começar, como abordar o nariz pequenino e teimoso, os lábios cerrados, os olhos esmorecem, eles olham para mim esmorecentes, e o meu próprio olhar ficou vidrado. Comecei num ponto entre os olhos dela. Ela não sorriu nem demonstrou surpresa alguma, talvez porque não houvesse nenhum traço de movimento no meu rosto, ou é o que eu pensava. Já estive enganado a este respeito. Ela deu um passo para o lado lenta e deliberadamente, como se completasse um movimento numa dança formal. Ficou parada na frente dos frios. Eu também me coloquei em movimento, como se respondesse ao mesmo maestro, alcançando uma posição em frente aos peixes, à direita dela. Apanhei um linguado, segurando-o por tempo suficiente para que encobrisse a minha mão. Depois enfiei o linguado por baixo da camisa. Ele estava especialmente frio, mas eu fiquei quieto. Ela seguiu em frente e eu segui em frente, sem saber se eu estou seguindo ela ou se ela está me seguindo ou se de algum modo nos movemos paralelamente um em relação ao outro. Parei para pegar um vidro de corações de alcachofra, que coloquei no bolso da minha jaqueta. Quando olhei outra vez, ela tinha desaparecido. A separação não é aguda. Pelo menos pude ocupar, por um breve momento, uma posição amistosa e distanciada à frente do balcão de carnes. Eu estava quieto, mas tenho pensado e suspeitado do silêncio já faz um bom tempo. Há certos momentos, após um estranhamento, em que o meu pau se encolhe para dentro do corpo. Não, não é isso. Não tem nada a ver com isso. Mas passou perto. Eu devia ter encurralado ela com o carrinho e metido nela enquanto ela se curvava sobre o balcão. O resto não importa. É possível que ela não tenha percebido. Ela não percebeu. A neutralidade deve ter sido a sedução. Continuei empurrando, enchendo o meu carrinho com suco de laranja, leite, ovos e queijo. Comidas sem cheiro, frias ao toque. Os olhos dela tinham sido muito azuis, como se fitassem a distância, assim como os de Nog. (Olhos que conheci.) Mas os olhos dela eram apagados, esmorecentes. As memórias virão, vêm vindo, listas de separações, de chegadas. Não tem pressa. Nog não desapareceu. Só a memória sobrevive. Os olhos obtusos dela refletiam uma jornada, nem que fosse só pela carne, mesmo assim uma jornada. E Nog está numa jornada de caminhada obsessiva e sono em pisos trincados entre cobertores mascados por cães. Não consigo ver além disso. Ela tinha ido embora, não me engano quanto a isso, mas alguma coisa houvera, ou pelo menos reparara-se em algo. Não um entendimento, não estou tomado por emoção tal que me permita suspeitar um entendimento, mas talvez uma paranoia, uma paralisia compartilhada, uma delicada e contida… Não importa. Tornei a encontrá-la em outro corredor. Reparei em dois abacates e uma cabeça de alface no carrinho dela. Peguei um vidro de coquetel de carne de camarão, duas latas de ostras defumadas e uma lata de salada com frango em que eu não tinha nenhum interesse particular. Lembro ter enchido ambos os bolsos das calças com molho tártaro, cebola desidratada e páprica. Eu não ignorava completamente que aquilo podia ser uma armação para o meu lado, que eu podia ser dedurado para me marcarem ou prenderem ou algo assim. Abandonei tudo no carrinho mais próximo, exceto por dois tabletes de manteiga, uma vasilha de leite e um vidro pequeno de corações de alcachofra. Mantive o linguado dentro da camisa. A umidade me mantém afinado, focado na tarefa a cumprir, na possibilidade de uma progressão, na esperança de que haja, com efeito, uma tarefa. Dirigimo-nos aos caixas. Eu estava aberto, pronto para que ela se revelasse, para que se mexesse para frente ou para trás, para que caçasse ou fugisse. Continuo aberto, parado, como que no aguardo de alguém ou algo. Mas era meio confuso, as pessoas viravam borrões, os corredores sem fim, quase circulares, a comida subitamente animada, campos de latas de café acenando, fileiras de limões suarentos e alfaces em expansão, pilhas vacilantes de bananas e doces industriais e um amontoar-se da comida do meu próprio carrinho, como que procurando se aquecer, minúscula e temerosa. Eu estava na fila do caixa, abrindo caminho, empurrando um delirium tremis para lá, e nada acontecia. Paguei, agradecido, e ela pagou também, bem na minha frente, por um pé de alface e dois abacates, os bolsos dela abarrotados, o cesto de palha cheio e o enorme espelho em cima refletindo tudo. Mas depois estávamos na rua. Tudo acaba encontrando oportunamente o caminho da rua. Andamos. Ela parou no meio de um estacionamento e deixou a mão mole se encaixar na minha. Beijando o lóbulo de uma orelha, ela confessou que, só para se manter em forma, para se manter no controle, por assim dizer, ela às vezes oferecia os seus serviços aos gerentes de dois supermercados.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

35. Primeiro sonho com a minha mãe, um conjunto de casas vermelhas e Naphta, o jesuíta

Costurei um pano no rosto da minha mãe, que o sol horizontal ardia nos olhos, e andamos juntos até o conjunto de casas baixas espalhadas pelo loteamento de três hectares. Tivemos oportunidade de ver tudo da colina: a planta das construções era perfeitamente quadrada, assim como a do terreno em que repousavam. Conjugado ao esquema de cores da cena—todas as casas vermelhas, o chão ocre, o ar amarelo e agora apenas o fantasma alaranjado do disco solar—, o espaçamento regular entre as construções conferia ao assentamento um aspecto de cidadela de blocos de montar. Dentro daquelas casas cometiam-se atrocidades, cada quitinete reservada a uma modalidade específica de prática indizivelmente obscena. Isso era tão claro quanto impronunciado. Chegada a hora, o pano costurado no rosto da minha mãe ajudaria a não ver nada.
       Ninguém passava pelos corredores áridos formados pelas paredes separando o dentro do fora. Não se via ninguém além de nós e ninguém assomou à janela ao enveredarmos pelo labirinto.
       Entramos numa das casas. A primeira coisa que me capturou a atenção foi o fato de que o interior da casa era grande demais para caber dentro dela. Um corredor escuro, de paredes caiadas, ia em linha reta do começo ao fim do prédio. Agora, tratava-se de um prédio. As portas, distribuídas simetricamente ao longo do corredor, eram de um material metálico completamente encoberto pela ferrugem. Na porção superior, vidros fumê permitiam entrever a claridade ou a penumbra dos aposentos.
       Enquanto avançávamos pelo corredor, reparei em que o pano que recobria o rosto da minha mãe já parecia ser outra coisa—estava mais para tela ou lenço, um lenço de seda preto estampado com um grande losango azul marinho. Filigranas douradas se inscreviam no azul. Talvez fosse mesmo uma tela ou um painel eletrônico, pois as filigranas emanavam um brilho dourado cambiante—agora vindo das do canto esquerdo, que logo desapareciam e tornavam a aparecer embaixo, no canto do olho ou na blusa, que se tornara também azul marinho ou sempre o fora e eu não percebera antes. Logo eram as do centro que brilhavam e procediam a girar em torno do próprio eixo e repousavam inertes imediatamente depois da gente piscar, como se a coisa toda pudesse ter sido apenas fruto de um movimento involuntário da cabeça da minha mãe. Por meio das depressões no tecido eu adivinhava que o rosto dela passara por uma transformação substancial. Tornara-se não apenas outro rosto, mas outra coisa por completo.
       Para aliviar o meu estranhamento, quis remover o lenço, mas ela obstou a que eu tocasse nele. Disse que estava muito frio, preferia ficar assim mesmo; além do mais o negócio estava costurado, fio azul perpassando o pescoço e recobrindo a linha dos cabelos, e eu não tinha tesouras para rompê-lo sem causar a dor que ela sentiria se eu simplesmente puxasse o lenço; assim fazendo, o mais provável era que a sua pele fosse arrancada com o pano, e aí sim é que a coisa ia ser feia…
       Bati à quarta porta do lado direito do corredor. Sem resposta. Dirigimo-nos então à próxima, ainda do lado direito. Verifiquei que estava destrancada. Entrei e olhei para trás ao sentir que a minha mãe ou quem quer que fosse tinha desaparecido com as suas filigranas.
       Sozinho no aposento, sentei-me na cama para esperar. Caí no sono. Quando acordei, olhei para os pés da cama e vi um espelho de corpo inteiro. Nele estavam enquadrados o meu rosto e o de Naphta, o jesuíta radical de Thomas Mann. Levantei da cama e observei que o meu rosto desaparecia da superfície do espelho, mas não o de Naphta, cujo corpo tomava forma, passando a ocupá-la inteira. Ele carregava um arco que emitia um brilho dourado como o das filigranas, com o qual atirou uma flecha de luz que fez o vidro em cacos.