segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

55. Lâmina


A verdade da lâmina está no sangue. Não importa a função para que tenha sido talhada, a faca tem sede, assim como eu e você.
       Passei a carregar a minha há três dias; desde o primeiro momento ela me fala, conta histórias sobre os outros com a intenção que eu já conheço, e é por conhecer que desconsidero as suas razões.
       A força de um homem está em resistir àquilo que possui.


       A lâmina tem sede de sangue, o carro de velocidade, a cadeira de repouso, o jogo de mais jogo e mais rápido, cada vez mais rápido.
       O homem tem sede de tecnologia. A mulher tem sede de tecnologia. A criança tem sede de tecnologia. Juntos, eu, a mulher e a criança construímos uma estante para armazenar os itens que vínhamos coletando, a fim de constituir um inventário do nosso tempo.
       Passamos a recolher lixo da rua, o orgânico, o descartável e o reciclável, afixando a cada peça um rótulo com uma breve descrição, o endereço, a hora e a data em que foi encontrada.
       Garrafa térmica trincada: Rua José dos Reis, São Paulo, SP; 12/03/1986, 16:45.
       Não saberia dizer de quem foi a ideia, se minha ou da mulher, nem qual foi a nossa intenção ao construir a estante. O fato é que nos tornamos o que se costuma chamar modernamente de acumuladores.


       Encontrei a faca na Rússia, em área isolada por cordão sanitário, em meio a uma dúzia de ovos intactos dentro da caixa. De longe vi uma miniatura do arrebol refletido em uma das faces da lâmina. Ao virá-la, acreditei entrever a lua. Mas não era a lua de verdade, só o farol de uma Toyota que parava cheia de gente para desembarcar e voltar para o país deles sem que ninguém visse.


       As pessoas pagam para entrar na nossa casa e ver o lixo. Tiram fotos de sacos e sacos empilhados na lavanderia, rotulados: Sacos de lixo, Curitiba, PR; 14/07/1980. Dirigem-se à sala para assistir o jornal numa tevê japonesa encontrada em Angra dos Reis, sentados sobre poltronas de diversos estados. Comem da comida que encontramos nas ruas mais próximas e requentamos bem para matar as bactérias.
       Os preços dos pratos são astronômicos. Mas é como todo mundo diz: vale pela experiência.
       Foi assim que nos tornamos autossustentáveis.
       Folha de couve: Entrada principal do Cemitério, Parintins, AM; 01/02/1995, 08:00.


       Uso a minha faca nova para abrir filhotes de carneiros encontrados mortos, picar tomates, fazer tomilho em pedacinhos muito finos e descascar abacates encontrados pelas ruas em melhor estado do que aqueles pelos quais as pessoas pagam—não digo que pagam caro, mas ainda assim pagam caro demais pelos abacates nos supermercados, considere que eu os encontro de graça no meio da rua, escaldantes sob o sol, pura massa nutritiva esverdeada com a superfície e mais ou menos um terço da polpa calcinadas pelo asfalto.
       Ogiva nuclear: Descampado próximo à Veterans Memorial Highway, Santa Fe, NM; 21/01/2013, 00:26.
       O lucro jorra desde que a criança completou três anos. Isso deve ter sido por volta de 1994.
       Antes disso fazíamos por prazer. Agora não é que o prazer tenha acabado. Mas temos contas a pagar, hábitos a manter, uma reputação.
       Isso ainda vai durar pelo menos seis anos, segundo os meus cálculos. Depois poderei me aposentar.


       Agora a criança é um homem feito, sai com o caminhão dele antes do sol nascer e está à mesa no horário do jantar, tendo atravessado cadeias montanhosas atravessadas por trilhas e cidades menores que a sua e cavernas artificiais pensadas para servir de abrigos antiaéreos em que hoje parques temáticos fazem rodar a economia local e trazido para casa algumas toneladas de itens que eu e a mulher catalogaremos no dia seguinte, desde o raiar do dia até a hora do jantar. Nós jantamos cedo.
       Prancheta de madeira: Avenida Atlântida, Rio de Janeiro, RJ; 28/07/2002, 09:03.


       Eu sacio a sede de sangue da lâmina à melodia estranha dos guinchos de um porco que aparentemente se perdeu e entrou aqui em casa enquanto eu lia no celular uma notícia sobre o cenário político da Tchecoslováquia.
       A faca pede que eu a enterre na cabeça de um freguês. Com um repolho na mão, resisto bravamente.
       Além da mulher e da criança e do celular e da faca e da casa e do lixo eu tenho alguns medos: andar sozinho pela rua à noite e o diabo.


       Vai chegar o dia em que a faca vai sair voando sozinha e me matar com a mulher e a criança no meio da noite. Tudo que eu posso fazer é postergar esse dia, dia após dia, bravamente, por seis anos. Acho que vai dar.


       O nosso restaurante cobra caro, mas não mais caro que o de qualquer outro estabelecimento do mesmo nicho—lugares-com-comida-anexos-a-pontos-turísticos. Como o passeio pela casa custa apenas três reais, acho que no geral estamos tendo um lucro bem justo.
       Afinal, não é todo mundo que precisa comer com a gente, não é mesmo? A necessidade pode até ser criada. Mas não por mim. Não por mim. 

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

54. Como me livrei de mais um súcubo

Hoje à tarde uma garota apareceu no portão aqui de casa. Eu estava jogando ovos para o alto e apanhando eles com a outra mão, tentando não quebrá-los, esperando que a clara e a gema, ao final do exercício, tivessem se tornado uma única coisa que eu pudesse chamar de gara ou clema e cozinhar ou fritar para comer no jantar. A garota no portão fazia cosplay de um personagem de algum desenho animado ou seriado que eu não conheço. Queria o meu dinheiro para comprar cigarros ou cerveja ou alguma coisa assim, que decerto levaria para o parque a fim de fazer um piquenique noturno com os amigos. Reparei bem nela. Fiz questão. O que me chamou a atenção não foi o vestido nem o cetro, nem as orelhas de raposa costuradas a uma tiara de plástico, nem o nariz afilado nem os olhos verde-esmeralda que piscavam numa frequência de mais ou menos sessenta hertz; nem mesmo os cabelos naturalmente loiros descoloridos para atingir um loiro desbotado, lavado mesmo, por baixo dos quais uma cabeça pequena meneava denotando certa insegurança erótica própria à idade que a garota gostaria de aparentar ter; e nem a boca farta, vermelha, me pegou de jeito, embora tenha causado uma fagulha, rendido um pouco a minha alma e a acossado contra a parede de costas. Não lembro, perdão, o que foi que mais me chamou atenção nela.
       Convidei-a a entrar. Ela entrou. Entramos.
       Sentamo-nos no sofá. Conversamos sobre diversos assuntos, ex. o clima e as pessoas e o que as pessoas faziam ou como reagiam a estímulos os mais diversos quando inseridas naquele clima. Andava fazendo um tempo ameno, propício ao agir naturalmente. Ela observou que, apesar do tempo estar bom e o clima ameno e de chover só raramente sem que isso afete negativamente a humidade atmosférica, e de que isso tudo seja considerado, como eu já disse, um clima propício ao agir naturalmente, muitos amigos dela não vinham agindo tão naturalmente assim. Vide os amigos dela, que estavam esperando no parque. Nenhum deles parecia superar um nervosismo perpétuo, ela disse, um nervosismo cujas causas não podem ser facilmente identificadas nem por um observador próximo, como ela, nem por um um pouco mais distante (distanciado) ou profissional, como o psiquiatra deles, que era, aliás, também o dela. Lancei uma tese: a de que o nervosismo dos amigos dela se dava pelo fato da presença dela, seminua; que eles provavelmente não se abriam com ela devido à presença dela, não se abriam com o psiquiatra devido à presença dele, mas que, deixados sozinhos no parque, os amigos dela deviam estar se abrindo uns aos outros feito doidos, e quando ela chegasse, se já não tivessem ido embora, estariam tão exaustos de se abrir que teriam que desmaiar em vez de enrubescer e morrer caso fosse caso de desmaiar. Ela acompanhou o raciocínio enquanto bebia vinho branco a goles enormes. Era de se crer que estava bem misturado com água. Ao cabo de quinze minutos ela estava bêbada, e eu também.
       Coloquei a minha mão direita na coxa direita dela. Era o mais indicado a fazer, porquanto estávamos sentados no sofá, eu de pernas cruzadas à esquerda dela, que encolhia as dela em posição de lótus. Se tivesse tentado colocar a mão esquerda na perna esquerda, teria acabado trançando os braços e estragando tudo, eu me conheço. Do modo como estávamos, além de nos tocarmos carne com carne, logramos sobrepor linho a látex, o meu antebraço cruzado rente ao tronco dela, acariciando gentilmente a barriga. Logo ela montou no meu colo e me enlaçou com os braços.
       O telefone tocou. Corri para atender e consegui atender antes que parasse de tocar, como geralmente não logro fazer ou porque não quero, ou porque nada na vida me parece tão urgente quanto quando se é interrompido…
       Alô! Diz uma voz, alô! Quem fala deste lado sou eu, do outro a empresa Trabalhando Firme Em Nossas Vidas Para Torná-Las Melhores Através da Química. Mas as nossas vidas, no geral, nunca foram tão boas. Recentemente tenho dormido bastante; terminei a minha dissertação sobre recintos fechados, aqueles que têm a opção de se abrir ao menor sinal de um toque que se aproxima no tempo, e tenho, ou tinha, modos de fazer dinheiro em vista, apesar de que agora me escapam. Durante a redação aprendi, por meio de um texto a que cheguei após clicar num hyperlink, a não empregar palavras como hypertexto quando for possível descrever exaustivamente os conceitos que encerram, ocupando deste modo mais de uma página com informações que ao leigo se revelarão muito úteis e afagando ao mesmo tempo o ego do especialista, que pode pular quantas páginas julgar necessário e terminar a leitura em menos de cinco minutos. Resumir-se-á assim a sentença final do especialista em uma única longuíssima frase abarrotada de conceitos de cujos conflitos se dirá, dependendo da habilidade interpretativa do leitor, que foram muito bem resolvidos mediante o emprego das preposições adequadas, ou, inversamente, que não foram, não, e o trabalho todo não faz o menor sentido. A mim pouco importa, pois decorrem desse trabalho os modos de fazer dinheiro supramencionados, os quais esqueci ou estou em vias de esquecer.
       Quem fala? Diz a voz. Quem fala digo eu! Pois sou desconfiado. A voz cala por alguns instantes e depois retoma; eu corto: gostaria de falar com quem? Com a garota seminua no meu sofá, eu penso. Pois não, aqui é o Diego, de Minas Gerais, diz a voz, e gostaríamos de conversar sobre o estado de bancarrota em que o senhor vive e sobre essa menina que acaba de aparecer fazendo cosplay no seu portão e que se encontra agora no seu sofá. Pois não, eu digo, sou todo ouvidos. Então ele começa a falar em jargão empresarial, porém num tom de admoestação que me faz pensar em chamas e perdição. A voz vai diminuindo, provavelmente culpa da telefônica à qual me subscrevo; antes de cair, rogo que me repasse sucintamente aquilo que ela tem a repassar; ao que ele grita apenas: Cuidado!!!
       E foi assim que me livrei de mais um súcubo.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

53. Eu, investigador particular

Contratado para investigar um casal da alta sociedade por razões que desconheço, alugo uma fantasia de gorila e me infiltro numa festa. O cenário é o terraço de um apartamento não sei se em São Paulo, Bankok ou Nova York; através dos olhos vítreos da máscara perfeitamente conformada às minhas feições tenho a vista de um rio muito largo, e se virar a cabeça rápido demais sou capaz de cair antes de ver um vulto se dirigindo à porta do elevador. Chego a tempo e encaro a estranha figura de um extraterrestre, que acompanho até o sétimo andar para depois descer no quinto e escalar dois pisos de dois em dois degraus. Deparo com as portas de emergência trancadas. Frustrado comigo mesmo, volto ao terraço. Lá avisto pela primeira vez o casal que devo investigar. Acompanho-os discretamente por duas horas, grunhindo casualmente para os convidados que vêm puxar conversa, o que parece causar certa sensação, pois não demoro a me encontrar empoleirado numa cadeira agora aos urros de gorila; depois perco o foco de vez e sou confortavelmente carregado festa afora sobre os ombros de dois personagens vestidos de segurança e que podem muito bem sê-lo. Eles me depositam dentro do elevador; este começa a descer; e uma sobriedade nefasta desaba sobre mim quando me percebo parado no sétimo andar. As portas estão fechadas, ainda há tempo; faço soar o alarme, o que causa um travamento geral do sistema elétrico; as luzes se apagam; pronto. Do outro lado da porta me alcançam vozes inumanas, gorgolejos que me trazem à lembrança imagens de vidas que não lembro ter vivido; cheio de terror, percebo que dedos finíssimos se meteram pelas frestas adentro, tentam agora abrir a porta à força. “Entregue-nos a câmera,” alguém grita, “senão.” A nossa conversa, que começa tão pouco promissora, acaba no seguinte arranjo: descerei até o terceiro andar, depositarei a câmera no corredor vazio, retornarei ao sétimo à espera de que alguém confirme o recebimento, e depois estarei livre para ganhar o térreo e me mandar daqui ileso. Dito e feito, saio do prédio ofegante, suado dentro da fantasia, e entro num Burger King a duas quadras de distância, onde, sentindo-me observado na fila do caixa, venho a perceber que não saberia dizer com alguma certeza se o que me acontecera essa noite havia sido extraordinário ou só a soma de mais um dia de trabalho.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

52. Uma lição de vida

Marcelo, um especialista, é contratado por uma empresa que usa gordura como matéria prima de todos os seus produtos para redigir manuais relativos a situações básicas do cotidiano. Parece que os funcionários não sabiam muito bem como lavar as mãos, por exemplo, o que acabava causando alguns problemas de higiene, porque como é que iam encostar o dedo na tela do monitor sem deixar ele todo emporcalhado. Então ele vai e escreve um manual sobre como lavar as mãos, como usar monitores abstendo-se de encostar o dedo neles, como bater o ponto digital no novo aparelho biométrico com variação de no máximo dois minutos para cima ou para baixo, como se comportar em festas etc.
       Os manuais de Marcelo começam a fazer sucesso.
       Corre o boato de que Marcelo é basicamente um cara bacana, que sabe fazer as coisas e faz elas direito. O boato chega aos ouvidos da cúpula. Uma mesa de onze pessoas, entre sócios, administradores e delegados, todos mascando sanduíches de banha de porco, decide desenvolver um projeto especial tendo Marcelo como encarregado principal.
       Marcelo desenvolve o projeto e ele é aprovado pela cúpula. O objetivo desse projeto é fazer com que todos façam tudo direito. E ele funciona. Não obstante, uma vez que todos estão fazendo tudo direito, Marcelo se torna obsoleto.
       No entretempo cultivou relações com gente influente dentro da empresa, e isso lhe vale para não ser demitido por ora. Ele começa a comer compulsivamente, aparece bêbado depois de intervalos para o café, passa a mão cheia de gordura na secretária do chefe. Engorda trinta quilos em um ano. Passa a atrapalhar os colegas deliberadamente com canetas laser enquanto eles elaboram fórmulas para otimizar a produção de shampoos e sabonetes feitos de gordura animal e químicos nocivos à saúde humana. Só está ali matando tempo.
       Em todo canto vê os seus manuais afixados—nunca apoiar o cotovelo na mesa de trabalho, procurar sorrir ao encontrar pessoas de hierarquia superior, comer pelo menos três porções de frutas ao longo do dia. Ele odeia aquilo, agora que não consegue fazer nada direito. Finalmente pede demissão. Engorda mais trinta quilos e abre a sua própria empresa, tendo como objetivo a produção de produtos à base de gordura e a sua colocação no mesmíssimo nicho de mercado visado pela outra, o de pessoas muito pobres que não conhecem nenhum produto melhor e mesmo que conhecessem não comprariam porque é muito caro.
       Ele começa fazendo tudo errado, mas à medida que a empresa prospera passa a corrigir o próprio comportamento, perder peso, ver as coisas com outros olhos, até que chega o dia em que está falando em diversificação e pesquisa e desenvolvimento e todas essas coisas boas sem nenhum sorriso condescendente, levando os diretores de empresas concorrentes a sério em vez de simplesmente mijar nos retratos deles que mandou estampar no fundo do mictório da sua suíte. E perde peso, e se casa com uma menina vinte anos mais nova. Parece que as coisas vão indo bem.
       Um dia, andando entre os seus empregados da linha de produção, ouve um boato. Sobre um cara que é basicamente uma boa pessoa e faz as coisas direito. Esse cara anda organizando festas após o expediente, pagando bebidas para todo mundo, e quando sai da empresa é a pessoa mais engraçada do mundo, e quando volta o empregado mais produtivo. Marcelo traz o assunto à pauta na próxima reunião de cúpula. Fica acertado que darão a esse funcionário exemplar uma chance de crescer na empresa. Todos os sócios parecem estar precisados de sangue novo.
       Enquanto isso a empresa de Marcelo se tornou referência nacional em óleo para motor e iogurte grego. Ele incorpora empresas iniciantes com o apetite insaciável de um gigante engolindo criancinhas. O seu carro é agora um Mitsubishi vermelho. Ele tem três amantes e mais uma esposa, secreta, na China. Fora as secretárias.
       Certo dia fica sabendo que uma estagiária sua foi estuprada e morta, possivelmente por algum dos seus sócios. Ossos do ofício.
       Chama o bom funcionário para uma reunião particular em seu escritório, no andar mais alto do prédio mais alto da cidade. O bom funcionário fica impressionado ao entrar: o escritório de Marcelo tem setecentos metros quadrados, cheira a charutos finos, toda a mobília é de madeira maciça, os quadros são as os originais de reproduções famosas. Eles conversam. O funcionário mantém uma postura respeitosa de reserva ao longo de toda a entrevista.
       A empresa de que tratamos, a essa altura, detém o monopólio do mercado de rações para animais domésticos e tintas para madeira. Não há um carro no país que não preste tributo à conta bancária de Marcelo. Poucas são as mulheres que pensam nele quando não é absolutamente necessário, mas ainda mais raras são aquelas cujos cabelos e rostos maquiados não são regularmente tocados pelos seus produtos. Isso ele expõe ao jovem e promissor bom funcionário do modo mais humilde possível.
       Eles conversam, jantam, o funcionário evitando falar muito, Marcelo se expandindo cada vez mais com o calor do vinho e a enxurrada de recordações das décadas passadas. E ao fim da noite, com um breve comentário à porta de saída, Marcelo o coloca direto no olho da rua, sem justa causa nem nada.
       Que isso lhe sirva de lição!

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

51. Senhor da Ilha

Fui com amigos a uma ilha semideserta a fim de passar a virada do ano. Na data apropriada, ceamos e fomos passear pela orla. Atravessamos o canal pela ponte, depois da qual adentramos uma área encoberta por forte neblina.
       Não sei bem em que momento me perdi do grupo. Andei até uma escarpa íngreme, a luz fraca do celular acesa para evitar o contato dos pés com galhos, conchas e corpos inertes de águas-vivas, e me reclinei contra um rochedo. Precisava retomar o fôlego perdido às custas de dez anos de tabagismo. Eu ainda segurava a minha taça de champanhe. Sentia-me levemente embriagado, um pouco eufórico. Deitei-me na areia e caí no sono contemplando as estrelas.
       Acordei com o sol alto e o cheiro pungente de enxofre, a cabeça repousada sobre um travesseiro de saco de batatas cheio de penas. Não havia mais encosta nem rochedo à vista.
       Levantei-me e me coloquei a procurar traços do caminho que percorrera na noite anterior, sem sucesso. Ao cabo de três horas de caminhada ao longo da linha da maré, não divisei nenhum sinal de civilização.
       Refiz os passos da caminhada até voltar a encontrar o travesseiro. A taça de champanhe continuava ali onde a deixara, mas agora estava cheia de um frisante deliciosamente fresco. Ao lado dela repousava um prato de carré de porco preparado à moda da Westphalia e um maço fechado dos cigarros de minha preferência. Comi com apetite, esvaziei a taça com sofreguidão, fumei dois cigarros para digerir e me coloquei a pensar. Tentei pensar com afinco. Mas me sentia tão cheio que…
       Durante os dias seguintes consolidei uma rotina. Eu passei a dar caminhadas mais curtas e com maior frequência. Sempre que voltava encontrava o frisante fresco, um maço de cigarros intacto, um prato delicioso fumegante sob a sombra de uma palmeira. Era estranho, eu pensava, mas nem tanto. Não me preocupava tanto com a minha situação, visto que ela não era propriamente crítica. Eu me deixava levar pela maré.
       Logo passei a receber outros mimos: aparelhos eletrônicos de marcas diversas, jogos solitários de tabuleiro, fotos de gente rica retiradas de revistas dos anos recentes, cartas de amor de desconhecidos dirigidas a desconhecidos, animais de estimação, capacetes, aparelhos radioamadores estragados, miniaturas de pontos turísticos os mais diversos, charutos cubanos, peças de mobília em madeira maciça, ativos sob a forma de bônus de baixo risco e debêntures, quilos de debêntures, quilotoneladas de debêntures. O rol não é exaustivo.
       Alguns dos aparelhos eletrônicos que eu recebia possibilitavam o contato com o mundo por meio de uma poderosa conexão a uma rede móvel. Eu podia pedir socorro, se assim quisesse. Podia ativar o GPS, como fiz mais de uma vez, a fim de descobrir a minha localização exata, cambiante como a posição das estrelas. Podia escrever para a minha família dando notícias do que se dera e pedindo que viessem me resgatar. Ou então apenas dizer que estava bem, que não se preocupassem comigo.
       Com efeito, eu estava bem. Engordara vinte quilos e era muito feliz com os meus sete gatos, quinze caranguejos, dois cavalos, as minhas nove espécies diferentes de moluscos e a minha incontável variedade de plantas exóticas em potes ornamentais.
       No entanto, quando me conectava à internet, procurava me restringir à interação com os meus amigos — aqueles com quem viera para a ilha e outros, provenientes de todos os lugares do mundo. Jamais por meio de palavras, bem entendido. Clicava aqui, sorria ali, postava uma piada em alguma rede social. Era toda a interação de que eu precisava. Fechava o laptop, travava o tablet, colocava o celular em modo offline e procedia à próxima caminhada. Ao voltar, deparava-me com um aparelho blu-ray (gravador integrado) ou um novo par de chinelos.
       As surpresas das voltas das caminhadas me agradavam sobremaneira. Puro excedente de felicidade, assim era a minha vida então. Na teoria dos jogos, eu ganhava sempre. Eu sorria, agora à sombra de um guarda-sol de seda italiana. Negociava títulos da bolsa ou permitia que meu corretor, um taiwanês com quem mantinha contato estritamente via formulários intuitivos do site de sua empresa, negociasse os meus títulos por mim. Os meus lucros eram incríveis. Não demorei muito a acumular um império baseado em empreendimentos futuros. Abria o capital e o dinheiro escorria para dentro. Vendia as empresas para pessoas de bem, jovens bem relacionados e velhos empresários que as afundavam num piscar de olhos. Só a minha mão era capaz de mover a roda.
       Encomendei aparelhos de academia para voltar à velha forma. Encomendei todo o material necessário para construir uma casa e forneci o salário de 300 pessoas. Colocando-os para trabalhar noite e dia em turnos alternados, a minha nova residência ficou pronta em um mês. Encomendei suprimentos adicionais de importados, pois o fluxo básico regular da ilha já não atendia minhas necessidades. Os entregadores, pedreiros e mestres de obra seguiam à risca as instruções previamente combinadas. Eu os observava ao longe, do topo de uma montanha, e me escondia toda vez que alguém olhava para trás.
       Durante esse tempo, sentia saudades da minha antiga vida? Preocupava-me com os juros que o destino certamente não tardaria a vir cobrar? Com a origem do meu capital inicial?
       Não, não e não.
       E foi assim que eu me tornei o Senhor da Ilha.

sábado, 5 de janeiro de 2013

50. O humano

O humano compõe belíssimas canções de protesto e vai dormir sobre uma colcha de palha. Quando o dia acaba, está roçando o braço contra uma viga metálica ligada pelas extremidades a uma estrutura de madeira maciça do tamanho de um prédio de cinco andares. Entra nela pela porta principal. É escuro lá dentro, as sombras desaparecem no breu. O humano está assustado. Corta para uma boca escancarada que grita. Pouco a pouco a voz se modula numa gargalhada e logo depois numa espécie de murmúrio esgarçado cujo conteúdo humano nos escapa. O humano julga ter conhecido por um segundo o significado de Deus, encontrado a palavra secreta, alguma espécie de atalho para a satisfação eterna, mas logo esquece, refrigerante na mão e boné da Votorantin para proteger do sol a pique. Já pensou em se casar, mas passou. Agora pensa em animais e montanhas. Não em nada específico sobre eles. A maior parte do tempo, entretanto, não sabe em que pensa. Entretanto é seu modo de vida. Enche açudes, dança, sangue corre nas veias e finalmente pelo chão. O humano cai pela primeira vez na segunda ou terceira estação, carregando a pesada cruz de madeira, é o que nos dizem as escrituras. Tendo saído de casa descansado pela manhã, volta para uma casa diferente à noite, um apartamento com as paredes forradas por estampas de crustáceos e moluscos. Permanece acordado pela eternidade, depois nasce um boi. Quando o humano diz alguma coisa, é melhor ouvir, pois isso significa alguma coisa para ele. Vive em bando, raros são os humanos totalmente solitários. Estes se reúnem em grupos de assistência para humanos solitários, o que acaba com o charme da coisa. Seja como for, e para o descrédito das instituições e dos entes inumanos, fato é que o humano sempre vence, independentemente dos resultados atingidos.