segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

55. Lâmina


A verdade da lâmina está no sangue. Não importa a função para que tenha sido talhada, a faca tem sede, assim como eu e você.
       Passei a carregar a minha há três dias; desde o primeiro momento ela me fala, conta histórias sobre os outros com a intenção que eu já conheço, e é por conhecer que desconsidero as suas razões.
       A força de um homem está em resistir àquilo que possui.


       A lâmina tem sede de sangue, o carro de velocidade, a cadeira de repouso, o jogo de mais jogo e mais rápido, cada vez mais rápido.
       O homem tem sede de tecnologia. A mulher tem sede de tecnologia. A criança tem sede de tecnologia. Juntos, eu, a mulher e a criança construímos uma estante para armazenar os itens que vínhamos coletando, a fim de constituir um inventário do nosso tempo.
       Passamos a recolher lixo da rua, o orgânico, o descartável e o reciclável, afixando a cada peça um rótulo com uma breve descrição, o endereço, a hora e a data em que foi encontrada.
       Garrafa térmica trincada: Rua José dos Reis, São Paulo, SP; 12/03/1986, 16:45.
       Não saberia dizer de quem foi a ideia, se minha ou da mulher, nem qual foi a nossa intenção ao construir a estante. O fato é que nos tornamos o que se costuma chamar modernamente de acumuladores.


       Encontrei a faca na Rússia, em área isolada por cordão sanitário, em meio a uma dúzia de ovos intactos dentro da caixa. De longe vi uma miniatura do arrebol refletido em uma das faces da lâmina. Ao virá-la, acreditei entrever a lua. Mas não era a lua de verdade, só o farol de uma Toyota que parava cheia de gente para desembarcar e voltar para o país deles sem que ninguém visse.


       As pessoas pagam para entrar na nossa casa e ver o lixo. Tiram fotos de sacos e sacos empilhados na lavanderia, rotulados: Sacos de lixo, Curitiba, PR; 14/07/1980. Dirigem-se à sala para assistir o jornal numa tevê japonesa encontrada em Angra dos Reis, sentados sobre poltronas de diversos estados. Comem da comida que encontramos nas ruas mais próximas e requentamos bem para matar as bactérias.
       Os preços dos pratos são astronômicos. Mas é como todo mundo diz: vale pela experiência.
       Foi assim que nos tornamos autossustentáveis.
       Folha de couve: Entrada principal do Cemitério, Parintins, AM; 01/02/1995, 08:00.


       Uso a minha faca nova para abrir filhotes de carneiros encontrados mortos, picar tomates, fazer tomilho em pedacinhos muito finos e descascar abacates encontrados pelas ruas em melhor estado do que aqueles pelos quais as pessoas pagam—não digo que pagam caro, mas ainda assim pagam caro demais pelos abacates nos supermercados, considere que eu os encontro de graça no meio da rua, escaldantes sob o sol, pura massa nutritiva esverdeada com a superfície e mais ou menos um terço da polpa calcinadas pelo asfalto.
       Ogiva nuclear: Descampado próximo à Veterans Memorial Highway, Santa Fe, NM; 21/01/2013, 00:26.
       O lucro jorra desde que a criança completou três anos. Isso deve ter sido por volta de 1994.
       Antes disso fazíamos por prazer. Agora não é que o prazer tenha acabado. Mas temos contas a pagar, hábitos a manter, uma reputação.
       Isso ainda vai durar pelo menos seis anos, segundo os meus cálculos. Depois poderei me aposentar.


       Agora a criança é um homem feito, sai com o caminhão dele antes do sol nascer e está à mesa no horário do jantar, tendo atravessado cadeias montanhosas atravessadas por trilhas e cidades menores que a sua e cavernas artificiais pensadas para servir de abrigos antiaéreos em que hoje parques temáticos fazem rodar a economia local e trazido para casa algumas toneladas de itens que eu e a mulher catalogaremos no dia seguinte, desde o raiar do dia até a hora do jantar. Nós jantamos cedo.
       Prancheta de madeira: Avenida Atlântida, Rio de Janeiro, RJ; 28/07/2002, 09:03.


       Eu sacio a sede de sangue da lâmina à melodia estranha dos guinchos de um porco que aparentemente se perdeu e entrou aqui em casa enquanto eu lia no celular uma notícia sobre o cenário político da Tchecoslováquia.
       A faca pede que eu a enterre na cabeça de um freguês. Com um repolho na mão, resisto bravamente.
       Além da mulher e da criança e do celular e da faca e da casa e do lixo eu tenho alguns medos: andar sozinho pela rua à noite e o diabo.


       Vai chegar o dia em que a faca vai sair voando sozinha e me matar com a mulher e a criança no meio da noite. Tudo que eu posso fazer é postergar esse dia, dia após dia, bravamente, por seis anos. Acho que vai dar.


       O nosso restaurante cobra caro, mas não mais caro que o de qualquer outro estabelecimento do mesmo nicho—lugares-com-comida-anexos-a-pontos-turísticos. Como o passeio pela casa custa apenas três reais, acho que no geral estamos tendo um lucro bem justo.
       Afinal, não é todo mundo que precisa comer com a gente, não é mesmo? A necessidade pode até ser criada. Mas não por mim. Não por mim. 

2 comentários:

  1. (desculpa a linguagem xula do que acabei de deletar aqui)
    mas bah! o melhor até agora? tanto ritmo :~

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