O Diabo me decepcionou e foi embora. “Deixo em meu lugar a Inconveniência”, disse, e se
fundiu à parede do escritório, meio que entrando nela. Os contornos exatos do
Diabo ficaram marcados num amarelo purulento sobre a parede outrossim branca do
meu escritório, do lado oposto à janela.
Que seja.
Ele vinha atrapalhando a minha vida havia um bom tempo.
Entrei em contato com Fátima, que disse estar
doente, não podia aparecer até a semana seguinte. Então misturei água e sabão
com as minhas próprias mãos, forrei o chão com panos, peguei o esfregão e fiz o
meu melhor para limpar a parede. Mas a marca não saiu.
Saí para o almoço por volta das duas da tarde.
Pedi um sanduíche natural de atum que veio sem atum e um café preto que veio
com três quartos de leite. Percorrendo de volta a meia quadra até o escritório,
tropecei no meio-fio e quase pisei no rabo de um gato preto.
O porteiro disse que precisava me entregar umas
correspondências: duas multas, uma notificação de que o meu aluguel estava
atrasado e um punhado de mala direta.
Peguei o elevador lotado até o décimo terceiro
andar.
Respirei aliviado ao entrar no escritório, pois
estava tentando parar de fumar e o movimento e o barulho e as pessoas
apressadas carregando maletas e sacolas lá embaixo só faziam piorar o meu
estado de espírito. Entretanto respirei aliviado, a minha respiração melhorara
desde que reduzira o meu consumo diário a três cigarros, um após cada refeição,
mais um ou dois caso bebesse um pouco após o expediente, durante o meu happy
hour num bar meia quadra distante do meu escritório na direção oposta à do
restaurante, happy hour muito necessário se não quisesse morrer sufocado no
ônibus durante o horário do rush, quando calhava de ir de ônibus para o trabalho.
Esse era o caso hoje, eu tinha ido de ônibus e voltaria de ônibus. A não ser
que me desse ao luxo de chamar um táxi. A perspectiva de pegar uma bebida me
animou, fez com que eu respirasse ainda mais fundo, mais aliviado, as costas
apoiadas contra a parede bem ao lado da marca do Diabo. Eu estava tentando
parar de beber também, mas isso é outra história.
Por volta das três da tarde o meu telefone
tocou. Era um cliente insatisfeito. Expus o caso dele o melhor que pude,
insisti em que não havia mais nada a ser feito. Ele custava a entender que precisava
me pagar pelos honorários contratuais mesmo assim; que nem sempre a gente
consegue sair por cima; que a justiça é uma loteria; ameaçou até chamar a
polícia. Desliguei o telefone. Logo ele voltou a ligar. Disse que ia botar meu
nome na roda de macumba caso eu não aceitasse o pagamento parcelado em doze
vezes. Eu estava precisado de dinheiro para ontem, mas aceitei mesmo assim.
Estava terminando de passar mais um café, o
terceiro do dia, quando uma silhueta apareceu através do vidro fumê da porta. Ela
tinha um formato indistinto, meio estranho, quase como o de uma montanha
solitária desenhada sobre a linha do horizonte. Imaginei uma cabeça provida de
um longo topete, com longos cabelos loiros caindo sobre os ombros e descendo ao
redor do corpo até os pés. Os olhos incrustados nela deviam ser azuis, ou não—o
cabelo era escuro, os olhos verdes, seria uma jovem viúva italiana necessitada
dos meus serviços…
Deixei a campainha soar três vezes antes de me
dirigir à porta, o tempo de encher uma xícara e limpar a garganta. Abri; a
figura sobressaltada diante de mim me sobressaltou por sua vez com um empurrão,
o que fez com que eu derrubasse todo o conteúdo da xícara sobre a minha camisa
nova, e entrou no meu escritório sem me dirigir um olhar.
Controlei a minha irritação a fim de olhar
direito para o homem parado no meio do meu tapete. Ele vestia uma capa de
chuva, respingando a esmo sobre a mobília abarrotada de papeis mais importantes
do que eu jamais conseguiria ser. Jogou a capa sobre a espreguiçadeira. Ele era
esguio, de porte mais ou menos atlético. A tez tinha um bronzeado sobrenatural.
Estava barbeado como se acabasse de sair do banheiro. Tinha os traços finos,
assim como os lábios, que comprimia num esgar malicioso. Os olhos dele eram
amarelos. E ele era o diabo.
“Aqui estou!” Disse, abrindo os braços como um
corvo. “Passou bem na minha ausência?”
“Muito bem,” respondi, tentando afastar a
camisa do peito para não me queimar, “obrigado.”
“Isso quer dizer que você ainda não me
perdoou?”
“Exatamente.”
“Pff. Que seja. Olha só isso aqui, temos café
recém passado.”
Corri até a cafeteira e despejei o líquido
fumegante pela janela. Ouvi um grito vindo de baixo, seguido de ameaças. O
Diabo sorriu.
Estava chegando a hora de ir embora. Juntei as
minhas coisas e saí da sala. Como ele não fizesse menção de se retirar, preferi
ignorá-lo. Tranquei a porta atrás de mim e peguei o elevador lotado até o
térreo e fui para o bar.
Lá encontrei as mesmas pessoas de sempre. Elas
jogavam cartas, como sempre, um pouco bêbadas, gritando obscenidades quando
perdiam uma rodada, contando vantagem quando ganhavam, sem ligar muito para o
dinheiro que ia escorrendo para as mãos da banca da vez. Eu me abstive do jogo
esse dia, dada a influência sob a qual me encontrava.
Bebi demais. A certa altura, fiquei sabendo
pelo âncora do telejornal que os motoristas de ônibus tinham declarado greve no
início da manhã. Para o diabo, pensei. Fumei três carteiras e gastei tudo o que
tinha em bebida. Quando saí era tarde demais para passar no caixa eletrônico, e
eu não lembraria a senha de todo modo, razão porque resolvi voltar e passar a
noite no sofá-cama do escritório.
Acendendo as luzes, encontrei uma
nota sob a porta. Queira perdoar o meu
comportamento. Toda a Inconveniência sofrida hoje lhe será amplamente
recompensada. Grande abraço do Diabo.
Passei o resto da minha vida me
comportando nem exemplarmente, nem de um jeito tremendamente repreensível, isto
é, de maneira equilibrada, medíocre, sem lançar desafios nem a Deus nem ao
Diabo, diplomaticamente, coisa para a qual, aliás, me acredito talhado. E toda
a inconveniência daquele dia, bem como as ocasionais dos que estavam por vir,
foram-me, de fato, amplamente recompensadas.
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