segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

59. Querida Sílvia




Sílvia, vês o céu?
Ele te espera.
Por aquele lanche que me pagaste no intervalo de nossas atividades vagamente artísticas do saudoso Maternal.
Pela inspiração, cujo veículo são tuas histórias sempre hiperbólicas, divertidamente desconjuntadas, riquíssimas em detalhes desnecessários.
Tens a arte de jogar sobre os detalhes desnecessários uma luz tal, e de tal intensidade, que a essência de uma anedota que vinda da boca de um adulto diríamos moral toma um rumo inesperado ao roçar os teus lábios—e agora parece querer apontar para a bondade intrínseca do mundo, agora para as cores chamativas do vestuário desta ou daquela pequena…
O céu te espera por todas as vezes que, durante uma aula enfadonha, me mostraste, no ecrã luzidio do teu smartphone, imagens de gatinhos em posições insólitas, por vezes vestidos como princesas ou piratas, demonstrativos eloquentes de que o mundo não abre mão de fabular nem mesmo em tempos de  assustadores saltos tecnológicos.
Pelo companheirismo que demonstraste ao me ver chorar, colocando-me alegre outra vez da maneira mais delicada que já se viu…
O céu te espera, Sílvia!
Há uma lua esplendorosa estampada nele hoje. Tive o ímpeto de tirar uma foto. Gostaria de ter capturado em imagem a aura ao redor da lua estampada no céu feito breu. Mas a câmera de meu celular, embora provida de uma lente Carl Zeiss, marca a que me subscrevo, não seria capaz de registrar as cores tais quais observadas—e sentidas!—pelo olho nu.
O olho nu como me encontro agora, nu como se encontra minh’alma diante de ti!
Espero que estejas olhando para o céu agora, Sílvia. Tantas maravilhas há, lá nos picos da noite escura…
Não gastarei fôlego tentando descrever a lua. Bastará mencionar que se encontra envolta por um espectro colorido, um arco-íris belo como os arco-íris vespertinos calham de ser, rodando a brincar com esta noite quente de fevereiro.
Mencionar que, fechado em círculo ao redor de si mesmo, todas as cores dançando numa vontade de alegria e dança, esta surpreendente guirlanda sussurra um nome cristão para mim…
Considera com carinho a lua e as estrelas…
Porém me ocorre, querida Sílvia, que há muitas coisas do dia-a-dia da gente para as quais somos costumeiramente obrigados a fechar os olhos, o que faz com que não possamos enxergar muito bem as outras coisas, mais importantes.
Seja a primeira delas o capitalismo.
Ó Sílvia! Não julga, por estas palavras, que me tornei comunista. Isto jamais!
Lembras-te do verão passado, quando me visitaste pela primeira vez no apartamento em que vivo sob a tutela de meus pais? Eu morava muito próximo à torre da Telepar; e tu, com o sangue carregado de mais glicose do que qualquer homem crescido seria capaz de aguentar em bons espíritos, quiseste mergulhar no bueiro fumacento em frente à garagem.
Estávamos em período de férias. Passáramos a manhã inteira a nos regalar com doces comprados na banca da esquina, antes devido a um impulso consumista—eu acabara de receber minha primeira mesada—que a qualquer urgência sofrida pelos nossos organismos.
Pobre Sílvia! Foste parar no hospital aquela tarde. E quem foi que te levou para lá, senão meu pai, em seu carro novo? Quem te envenenou, quem te transportou desacordada, quem te injetou insulina—quem fez de ti sua marionete, senão o próprio capitalismo?
Ainda és, talvez, nova demais para entender o que te digo, Sílvia. Compreendo perfeitamente que, embora contemos o mesmo número de anos sob as estrelas, nossas mentes encontram-se em estágios absolutamente díspares no que diz respeito à maturidade. Creio, porém, que uma década de experiências nem sempre prazenteiras neste mundo foi-me suficiente para eleger com alguma dose de sabedoria, dentre as diversas formas possíveis de organização social, aquela consagrada no modelo fourierista.
A boa notícia: confirmei hoje, com meus correspondentes anônimos, a existência de uma fazenda constituída nos moldes de minha predileção, localizada a poucas centenas de quilômetros ao sudoeste de nossa cidade!
Proponho que fujamos para lá na primeira oportunidade.
Viveremos do fruto de nosso trabalho, deixando para trás a loucura supérflua do mundo!
Viveremos um para o outro, e todos como uma família!
Pensa bem, Sílvia: não desejarias largar desta vida e vir tomar o fresco no campo?
Labutar, simples e honesta, entre gente simples e honesta?
Ver a lua, de estrelas guarnecida?
Crê em mim: é este o teu maior desejo!
Vem comigo—é o que te peço, Sílvia, e apenas isto—além disto: torna-te minha companheira para todo o sempre.
Repito: tenho plena consciência de que nossos estágios de desenvolvimento intelectual são tão díspares quanto podem sê-lo os de duas crianças crescidas no mesmo universo. Por isso é que te peço—e presta atenção agora, com toda a capacidade de concentração de que és capaz—toma minha Palavra por Evangelho, foge comigo para a Fazenda Socialista Rio Bonito!
Não obstante, entenderei se quiseres continuar sob a guarda de teus pais até a chegada da maioridade. A empreitada que proponho decididamente marcará o início de nossas vidas adultas; assim sendo, poderá afigurar-se-te momentaneamente desproporcional às tuas forças.
Coloco isto como uma nota de resignação a que espero que não dediques muita atenção, pois dúvidas sempre há de haver; cumpre a nós superá-las mediante nossos esforços. Acredito que teremos a força suficiente, enquanto casal, para mantermo-nos vivos e bem no mundo.
Eu mesmo tenho cá minhas dúvidas, às quais evito bravamente ceder o melhor de minhas forças vitais.
Nunca entendi, por exemplo, como um quadro de Jackson Pollock pode valer tanto. 
Nunca entendi como a ciência aborda o estudo empírico da física quântica, dada a alteração no comportamento das partículas subatômicas causada pela interferência necessária do observador em seu objeto de estudo.
Nunca entendi como posso gostar de alguém como gosto de ti.
Fico submetido desde agora a teu juízo, aguardando ansiosamente tua resposta.

Todo teu,
Flavinho (@_ruivo3522)


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