O anão coberto por um manto azul caindo no buraco argumenta que é preciso sim morrer
de vez em quando, algumas horas por dia, prova disso é o sono. Ao que o outro
anão, caindo nu por um buraco paralelo, não responde nada, pois está dormindo.
No fundo dos buracos há outros
buracos e cavando o fundo destes o centro da Terra pulsa vermelho e amarelo.
Mas ninguém consegue cavar porque as pedras são duras e quentes, não se movem
um milímetro nem mesmo mediante o uso de britadeiras. Alguém já tentou dinamite,
muitos ficaram feridos na explosão, boa parte da terra das paredes cedeu,
pensava-se que com a escavadeira seria fácil chegar de novo ao local das pedras
e que lá chegando não as encontrariam, pois estariam feitas em migalhas. Qual
não foi a nossa decepção ao chegar novamente perto do centro do mundo e
encontrar lá as mesmas pedras. É contra elas que os anões caindo no buraco se
espatifam.
O som que fazem ao se espatifarem
nas pedras é mole, líquido, e logo começam a ferver. O manto azul cai sobre os
corpos. A história acaba aqui.
Enquanto isso, no Palácio da
Justiça…
O presidente do Tribunal de Contas
alega ter comido um caqui da Dona Gislaine, a senhora que ficou rica da noite
pro dia vendendo caquis. Diz ele que gostou muito. “Gostei muitíssimo,” diz
ele.
As funcionárias vestem tailleurs e
andam de lá para cá com microssaias finíssimas, excitando a imaginação dos
filhos de funcionários eles mesmos jovens demais para o cargo.
Chico Buarque, por sua vez, recita
alguma frase de efeito baixinho, de si para si, incessantemente, empoleirado
sobre o tampo de fórmica de um balcão.
Os nossos amigos nos irritam a ponto
de cortarmos contato com todos eles. Isso se dá fora do Palácio, embora pouco
importe. Trancamo-nos em casa por dias e noites a fio, alimentando-nos apenas
de frango alaranjado. A casa é na verdade uma espécie de galpão, uma estrutura
aparentemente monolítica, sem janelas, sem portas, o acesso limitado à entrada
subterrânea que dá num túnel que dá no começo do mundo. Trinta milhões de
pessoas trancadas em casa, nessa casa, que é um galpão de mais ou menos
quinhentos metros quadrados situado entre duas das principais avenidas da
cidade, apertadas umas contra as outras, sofrendo. Sofrendo sozinhas. Pois os
amigos delas as irritam. Eles não entendem e não fazem questão de entender. E
isso é ruim. Parece que não dá pra pensar de outro jeito. Impossível argumentar
com essa gente.
O amigo próximo bate à porta,
acompanhado da namorada (a minha). Eles vinham enfrentando algumas dificuldades
em relação ao cumprimento de seus deveres cívicos. Alguns anões cobertos por
longos capuzes, a cara toda amassada na penumbra, tinham aparecido e os
impedido de votar nas últimas eleições municipais. Vêm agora me informar que, tendo feito uma visita ao TRE, voltaram a ser cidadãos. Isso se deu pouco antes do misterioso desaparecimento
de ambos. Foram encontrados dias mais tarde, dentro de um ônibus circular, com
escoriações e outros sinais de abuso. “Foram os anões?” Eu pergunto. Silêncio.
Vingança é tramada e colocada em
prática com sucesso. Daí resulta a situação descrita no começo do texto, aquela
dos dois anões caindo por buracos paralelos.
É um fim satisfatório? Voltar ao
começo? Tem sido muito usado em filmes ruins e videoclipes. Técnica barata. E
se o texto simplesmente acabasse sem dar aviso? Será preciso encontrar alguma
resolução para as pessoas amarguradas com seus amigos, aglomeradas no galpão,
murmurando incoerências? Elas se comunicam via celular. Mas apenas umas com as
outras. A rigor, ninguém ali é amigo de ninguém. Fazem solilóquios, sorriem em
momentos absurdos, inventam histórias a fim de distrair e desviar qualquer
ouvinte em potencial da verdadeira essência daquilo que gostariam de falar mas
jamais falarão porque só contariam a um amigo… Fim. De todo modo, você vai me perdoar: escrevo assim, dentre outras razões, porque estou caindo de sono.
Enquanto isso, na Praça Generoso
Marques…
Uma gangue de pombas brancas sai em
disparada na direção do sol.
Alguém grita: “Paz!”
Alguém grita: “Paz!”
O chefe dos anões esconde droga
embaixo da camiseta. A polícia passa olha desconfiada para ele não faz nada
porque coitado, deixa ele.
Eu estou dormindo sob o ponto de
ônibus, ao abrigo do sol e do céu.
Uma bala perdida vinda da Região
Metropolitana atinge e amassa ligeiramente a lataria de um Vectra preto. Tendo
viajado longa distância até aqui a uma velocidade de bala, não lhe restou muito
fôlego para causar estrago.
Os seus
novos vizinhos fazem o primeiro contato, a sua casa está um caos, você está com
uma camiseta do Zappa, bebendo cerveja e brincando com dois gatos.
Começamos bem!
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