sexta-feira, 20 de abril de 2012

30. Sermão dos ingredientes

       O cura proferiu um sermão.
       O cálice é o cálice da vida, e dentro de três cálices encontraremos três objetos diferentes.
       O primeiro carrega um ovo, ele disse, erguendo o primeiro cálice à altura da cabeça. Um ovo apenas, branco, amarelo, clara e gema, colesterol, proteína, o verdadeiro zigoto animal. Recomenda-se ingerir um desses diariamente, especialmente às crianças e às gestantes.
       Depois descansou o primeiro cálice sobre a bancada e, erguendo o próximo à maneira do anterior, com as duas mãos e os braços em arco, sorriu e disse,
       O segundo cálice carrega manteiga, puxando bem no i. E depositou o cálice da manteiga sobre a bancada. E suspirou. E desabotoou o colarinho.
       A essa altura a comunidade já esperava que a piada estivesse chegando ao fim, que ele descesse logo dali e parasse de uma vez com aquilo—fosse porque estava visivelmente bêbado, fosse porque devia dinheiro a muita gente—, mas ele não deu nem sinal de que se lixava.
       Ergueu o terceiro cálice e disse, botando a mão dentro e a exibindo, marrom, para a comunidade,
       Aqui está um cheiroso—disse, cheirando—, aromático—disse, inalando—, delicioso—disse, enfiando na boca o indicador e o retirando com um estalido seco—pó de café Melita.
       Pois bem. Um ovo, uma manteiga e um café. Três ingredientes básicos de um café da manhã saudável. E a comunidade ali, de jejum.
       O cura chamou então ao palco o seu assistente com um gesto da mão direita. O menino magro retirou um tampo falso da bancada de mármore, revelando cinco bocas de fogão, e acendeu duas delas usando a faísca azul do acendedor elétrico que sacou do bolso.
       O cura botou o ovo na água, dentro de uma panela pequena. Botou em seguida a manteiga numa frigideira e o café numa cafeteira, que ligou com o indicador molhado de baba. Levou as panelas ao fogo e, ato contínuo, ateou fogo à manga da batina. Abafou o fogo com a outra mão, recompôs-se e se jogou de vez na substância daquele sermão.
       Um ovo, uma manteiga, um café. Três ingredientes básicos de um café da manhã saudável. Sim, é saudável comer muito. Pois bem.
       O ovo, como vocês poderão ver dentro de alguns minutos, ficará cozido. É da natureza dele. A sábia natureza.
       A manteiga, por sua vez, derreter-se-á, tornar-se-á uma espécie de ranço, um ranço de sabor amargo, desagradável ao paladar.
       E o café estará passado, e será então hora de celebrarmos. 
       O que eu quero trazer para vocês aqui hoje é o seguinte ensinamento. Reparem em que todos os três ingredientes passaram pela mesma coisa. Essa coisa é o fogo, o calor do fogo. E cada um deles reagiu de maneira diferente.
       O ovo endureceu. A manteiga derreteu. O café se misturou à água e a contaminou, por assim dizer, com seu sabor e aroma refinadíssimos. 
       Assim são as pessoas. Quem é manteiga se derrete à primeira dificuldade, representada aqui pelo fogo. Torna-se esse óleo de odor acre que suja os cabelos e repele as mulheres. 
       Quem é ovo endurece, perdendo muito do próprio sabor e dos nutrientes com que veio ao mundo. 
       Quem é café é capaz de se adaptar às circunstâncias, aproveitá-las para tirar delas o melhor para si, tornando-se, ela, pessoa, uma só com o meio aquoso em que está inserida. 
       Não há mérito nenhum nisso, entendam bem. Não sei nem por que toquei no assunto. Esqueci o resto da história, desculpem. Enfim. Comamos.
       O cura aproveitou a gordura para fazer um omelete de ovo meio cozido e bebeu o café com volúpia. A comunidade se fartou com os pratos preparados especialmente para a ocasião. À tarde, todo mundo dormiu.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

29. Primeira história de assombração

Eles olham assustados para os muros da minha casa porque está abandonada, não obstante sentem a minha presença, fazem o sinal da cruz, com o canto do olho acreditam ver uma sombra passar. Alguns vestem batas e calçam botinas e passam de novo, e outra vez se arrepiam, e agora erram o sinal da cruz. Ora, isso apenas me fortalece. Quando dormem esperam por mim desavisados, é quando me dá mais prazer visitá-los—assumo a forma de uma árvore, digamos, e com um ramo ainda verde estrangulo a mãe do cachorro deles. É uma boa distração para todos, acordamos relaxados e já começamos a agregar visões para o próximo pesadelo. Ontem conjuramos hexaedros e fiz com que acreditassem que se tratava de cubos de gelo. Quando colocaram os hexaedros na boca as arestas se dissolveram em pura abstração, o que causou derrames em alguns dos observadores. Eles acordaram assustados, incomunicáveis uns com os outros, nem Skype tinham, depois tomaram café, comeram ovos com bacon e foram trabalhar como se nada tivesse acontecido. De fato, apesar de terem morrido durante o sono não se lembravam de nada, continuaram tomando os mesmos ônibus de sempre e olhando nas mesmas direções, repetindo as frases costumeiras—Oi, tudo certo? Tudo certo! E aí? Tudo certo!—, sorvendo as mesmas brisas, lavando os mesmos pratos. Antes do fim do dia flertaram com os velhos superiores enquanto respeitavam os rijos cadáveres dos pais… Numa palavra, se alguma diferença ficou latente no seu comportamento, estavam mortos demais para perceber. Isso vem acontecendo há décadas. Dormindo assim fomos pouco a pouco nos livrando do medo da morte, visitados (eu o visitante) por pesadelos diários, cada um mais bonito que o outro. O meu trabalho nunca está completo antes das seis da manhã. Durmo mal, durmo pouco, estou dormindo agora mesmo. Não tarda o dia em que morrerei de exaustão. Com o que sonha a égua dos pesadelos é assunto secreto, embora se encontre pormenorizado à exaustão num documento que espera pacientemente dentro da terceira gaveta (de cima para baixo) da escrivaninha de um general polonês.