quarta-feira, 4 de abril de 2012

29. Primeira história de assombração

Eles olham assustados para os muros da minha casa porque está abandonada, não obstante sentem a minha presença, fazem o sinal da cruz, com o canto do olho acreditam ver uma sombra passar. Alguns vestem batas e calçam botinas e passam de novo, e outra vez se arrepiam, e agora erram o sinal da cruz. Ora, isso apenas me fortalece. Quando dormem esperam por mim desavisados, é quando me dá mais prazer visitá-los—assumo a forma de uma árvore, digamos, e com um ramo ainda verde estrangulo a mãe do cachorro deles. É uma boa distração para todos, acordamos relaxados e já começamos a agregar visões para o próximo pesadelo. Ontem conjuramos hexaedros e fiz com que acreditassem que se tratava de cubos de gelo. Quando colocaram os hexaedros na boca as arestas se dissolveram em pura abstração, o que causou derrames em alguns dos observadores. Eles acordaram assustados, incomunicáveis uns com os outros, nem Skype tinham, depois tomaram café, comeram ovos com bacon e foram trabalhar como se nada tivesse acontecido. De fato, apesar de terem morrido durante o sono não se lembravam de nada, continuaram tomando os mesmos ônibus de sempre e olhando nas mesmas direções, repetindo as frases costumeiras—Oi, tudo certo? Tudo certo! E aí? Tudo certo!—, sorvendo as mesmas brisas, lavando os mesmos pratos. Antes do fim do dia flertaram com os velhos superiores enquanto respeitavam os rijos cadáveres dos pais… Numa palavra, se alguma diferença ficou latente no seu comportamento, estavam mortos demais para perceber. Isso vem acontecendo há décadas. Dormindo assim fomos pouco a pouco nos livrando do medo da morte, visitados (eu o visitante) por pesadelos diários, cada um mais bonito que o outro. O meu trabalho nunca está completo antes das seis da manhã. Durmo mal, durmo pouco, estou dormindo agora mesmo. Não tarda o dia em que morrerei de exaustão. Com o que sonha a égua dos pesadelos é assunto secreto, embora se encontre pormenorizado à exaustão num documento que espera pacientemente dentro da terceira gaveta (de cima para baixo) da escrivaninha de um general polonês.

3 comentários: