domingo, 29 de janeiro de 2012

17. Amigos, amigos

Os amigos estão calados. Há certa tensão na cena, mas ela não se encontra em ninguém. É antes intuída pela disposição dos objetos, pela gravidade com que os objetos se sustentam imóveis. A tensão deve pertencer aos objetos, provavelmente pertence aos objetos. Os amigos estão calados e vestem ternos completos e não estão tensos em absoluto, a tensão pertencendo talvez à espreguiçadeira em que o mais gordo dormita enquanto a música não começa. A luz incide sobre o seu rosto de modo a iluminar por dentro a narina direita, tornando a pele que a reveste translúcida. Dá pra ver veias e tudo, cartilagem e tudo. Os copos estão cheios, pouco depois vazios. Alguém interrompe o silêncio com uma anedota cuja interpretação imediata por parte dos demais gera uma onda de violência facilmente reprimida. A violência recua ao ser encoberta por gargalhadas, que pouco a pouco morrem e cedem lugar a comentários mais ou menos pertinentes. As vozes vão rareando até que se alcança novamente o silêncio. Os amigos estão calados outra vez e não há tensão em seus rostos. As mandíbulas estão relaxadas, os lábios se distendem. O mais gordo dorme agora, baba sobre o revestimento vermelho da espreguiçadeira. O mais bonito dos amigos embaralha interminavelmente um maço de cinquenta e nove cartas, dentre as quais se encontram nove curingas e uma carta de verso diferente do verso das outras. Esta carta introduz ao jogo uma variante inesperada. Todos sabem de que carta se trata, menos eu, e todos esperam que eu saiba e lhes conte quando perguntado, porque se esqueceram momentaneamente. Isso causa certa confusão na hora da escolha do parceiro para o jogo. Pois todos me escolhem com o intuito de vencer, contam com a minha capacidade incomum de contar cartas, que nunca me deixa na mão e me rende muito dinheiro em épocas de aperto, é certo, é claro… Mas o meu objetivo hoje é perder. O jogo começa, termina, eu perco. O meu parceiro começa a salivar. O meu parceiro é um homem alto cujas mechas loiras do topete se confundem gradativamente, à medida que os fios se afastam, em comprimento, do couro cabeludo, com o resto do cabelo, loiro também, apenas de uma tonalidade tornada artificialmente mais leve. As mechas loiras mais escuras se destacam do topete quando o meu parceiro saca uma pistola, se levanta e atira pro alto. Eu seguro a carta de verso diferente e o mais gordo se assusta, acorda sobressaltado. O quarto amigo, sobre quem nada foi dito até agora, volta do banheiro com um pedaço de papel higiênico colado na sola do sapato. Ele demora alguns segundos para apreender a gravidade da situação, depois se joga sobre o amigo armado. Eles caem. O amigo armado dispara três vezes e o quarto amigo morre. Enquanto ele morre eu trato de colocar todo o dinheiro que se encontrava sobre a mesa nos bolsos do meu paletó. Não tem pressa, me assegura o amigo armado. O gorducho treme e súbito morre, a velha fraqueza do coração. Eu termino de colocar o dinheiro nos bolsos e me sirvo de uma dose da garrafa de uísque que o amigo armado pegou da cristaleira. Ele se serve também, termina de um só gole, serve outra dose. Procuramos as chaves no bolso do amigo mais bonito, abrimos a porta, vamos embora.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

16. Dedicação à causa

Acabo de me afiliar a uma nova causa. Não a conhecia antes. Ela me mantém atualizado, atento aos desdobramentos mais ou menos relevantes. Ela me sustenta quando ninguém mais. Se ela morrer, eu perco o norte. Muita gente se encontra na mesma situação que eu. Os iniciantes me pedem conselhos. Digo o que me compete dizer, de acordo com os textos. Inevitável certo ranço de altivez escondido sob tapete de modéstia. O ranço vai sumir com o tempo, asseguram-me os meus. A modéstia vai ficar, genuína a partir de quando. O tapete vai virar carpete e o pó não vai mais poder ser varrido para baixo. OK, eu digo.
       Por enquanto, dou-me por satisfeito lendo notícias sobre os progressos recentes. Segundo os jornais, a causa anda ótima. Ontem explodiram mais duas localidades. Vinte golfinhos foram salvos, para os quais temos procurado posições no quadro docente de cursos reconhecidos pelo MEC. Uma senhora de mais de cem anos de idade faleceu depois de atribuir o meu nome a uma citação. No âmbito interno, marcamos um congresso para ano que vem. A causa será discutida a fundo, traduzida simultaneamente para cinco línguas modernas e duas mortas, repisada por especialistas recém-graduados e transmitida em código morse para a Noruega. Estou incumbido de prover os comes e bebes, tarefa não pequena considerada a abrangência quase universal da causa. Pretendo assar uma tonelada de pães de queijo e passar setenta mil litros de café, para facilitar a eloquência dos convidados e acabar com os nervos dos mais fracos.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

15. Apocalipse #1


Que se o chão se mexesse em vez das pessoas seria talvez o fim do mundo. Abri os olhos, eu disse que abri os olhos porque piscava, e lá estávamos. Nós, as pessoas, numa sala inundada de luz branca. Havia prateleiras pregadas às paredes, e sobre elas roupas para os dias ou meses que se seguiriam. Vou vencer pelo cansaço, pensei, e comecei a colocar peças de roupa em sacolas que encontrara em outro canto e escondera espertamente sob a camiseta que era minha. Isso porque viera vestido com ela, ela pertencia a mim nesse e em outros sentidos, eu estava portanto legitimado e pronto a prestar esclarecimentos a quem quer que viesse com ou sem um porrete na mão. Colhi roupas de todas as cores, calças e camisas e meias e até alguma peça íntima, além das de cama, é claro, um edredom inclusive, bem felpudo, bem grande, para queimar durante o inverno. Graças a deus não havia seguranças ou se havia não estavam lá, tinham ido dar uma volta pela cidade vazia, quem sabe tinham preferido trabalhar em outra coisa e agora davam voltas aos parafusos de outras engrenagens mais úteis à sociedade, embora a mais-valia evidentemente continuasse a mesma e o passo das coisas parecesse o velho devagar-quase-parando. Um ano novo começava, já era passada a hora de considerarmos a situação com a cabeça apoiada nas mãos e decidirmos que assim não dava, que o bom era mesmo ir às ruas e fazer outra coisa, qualquer coisa que não envolvesse pensar com as mãos suportando o peso das cabeças enormes, e este era o resultado. Nós, ali, com as mãos sobre coisas que não nos pertenciam, no sentido tradicional. Saí da sala e senti o vento entrar pelas orelhas enquanto o corpo sobrecarregado de tecidos se envergava ao sabor da gravidade. Parei num quiosque para tomar um suco, dei uma de perdido e saí sem pagar. Quando tentavam falar comigo, a não ser que fosse importante, fingia que não conhecia aquela língua, a ponto de começar a acreditar em mim mesmo e de me enganar ao pronunciar palavras começadas em uma ou outra consoante até pouco antes mais ou menos familiar. Isso me causou problemas junto ao departamento de imigração, depois que me surraram e me levaram para lá. Eram três homens vestidos de verde que só depois entendi serem policiais à paisana ou algo assim. Eles queriam que eu fizesse coisas muito além da minha capacidade, pelo que entendi. Que reescrevesse o passado apagando dele o momento em que me masturbava na praça, cercado por pombas e cachorros curiosos, por exemplo. Que nunca tivesse vindo de outro país por um caminho não vigiado, bastando andar de um lado a outro da rua e me declarar um cidadão, caso fosse o caso. Enfim que trocasse os pés pelas mãos e plantasse bananeira andando normalmente. E conquanto me fosse muito agradável pensar que uma segunda oportunidade me era dada por esses homens do governo, engravatados e dotados de poder terreno suficiente para alterar o calendário gregoriano, por outro lado estremecia ao pensar na fúria dos maias e dos católicos, sem falar nos astrônomos e astrólogos em geral, que se veriam todos obrigados a, por um capricho burocrático, refazer a partir do zero contas que vinham sendo feitas e refeitas desde muito antes do surgimento de qualquer pretensão estatal ao poder absoluto. Não, eu disse. Não vou fazer isso. Questão de piedade.