sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

15. Apocalipse #1


Que se o chão se mexesse em vez das pessoas seria talvez o fim do mundo. Abri os olhos, eu disse que abri os olhos porque piscava, e lá estávamos. Nós, as pessoas, numa sala inundada de luz branca. Havia prateleiras pregadas às paredes, e sobre elas roupas para os dias ou meses que se seguiriam. Vou vencer pelo cansaço, pensei, e comecei a colocar peças de roupa em sacolas que encontrara em outro canto e escondera espertamente sob a camiseta que era minha. Isso porque viera vestido com ela, ela pertencia a mim nesse e em outros sentidos, eu estava portanto legitimado e pronto a prestar esclarecimentos a quem quer que viesse com ou sem um porrete na mão. Colhi roupas de todas as cores, calças e camisas e meias e até alguma peça íntima, além das de cama, é claro, um edredom inclusive, bem felpudo, bem grande, para queimar durante o inverno. Graças a deus não havia seguranças ou se havia não estavam lá, tinham ido dar uma volta pela cidade vazia, quem sabe tinham preferido trabalhar em outra coisa e agora davam voltas aos parafusos de outras engrenagens mais úteis à sociedade, embora a mais-valia evidentemente continuasse a mesma e o passo das coisas parecesse o velho devagar-quase-parando. Um ano novo começava, já era passada a hora de considerarmos a situação com a cabeça apoiada nas mãos e decidirmos que assim não dava, que o bom era mesmo ir às ruas e fazer outra coisa, qualquer coisa que não envolvesse pensar com as mãos suportando o peso das cabeças enormes, e este era o resultado. Nós, ali, com as mãos sobre coisas que não nos pertenciam, no sentido tradicional. Saí da sala e senti o vento entrar pelas orelhas enquanto o corpo sobrecarregado de tecidos se envergava ao sabor da gravidade. Parei num quiosque para tomar um suco, dei uma de perdido e saí sem pagar. Quando tentavam falar comigo, a não ser que fosse importante, fingia que não conhecia aquela língua, a ponto de começar a acreditar em mim mesmo e de me enganar ao pronunciar palavras começadas em uma ou outra consoante até pouco antes mais ou menos familiar. Isso me causou problemas junto ao departamento de imigração, depois que me surraram e me levaram para lá. Eram três homens vestidos de verde que só depois entendi serem policiais à paisana ou algo assim. Eles queriam que eu fizesse coisas muito além da minha capacidade, pelo que entendi. Que reescrevesse o passado apagando dele o momento em que me masturbava na praça, cercado por pombas e cachorros curiosos, por exemplo. Que nunca tivesse vindo de outro país por um caminho não vigiado, bastando andar de um lado a outro da rua e me declarar um cidadão, caso fosse o caso. Enfim que trocasse os pés pelas mãos e plantasse bananeira andando normalmente. E conquanto me fosse muito agradável pensar que uma segunda oportunidade me era dada por esses homens do governo, engravatados e dotados de poder terreno suficiente para alterar o calendário gregoriano, por outro lado estremecia ao pensar na fúria dos maias e dos católicos, sem falar nos astrônomos e astrólogos em geral, que se veriam todos obrigados a, por um capricho burocrático, refazer a partir do zero contas que vinham sendo feitas e refeitas desde muito antes do surgimento de qualquer pretensão estatal ao poder absoluto. Não, eu disse. Não vou fazer isso. Questão de piedade. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário