domingo, 25 de dezembro de 2011

14. Estudo para um personagem simpático

Ele tem uma voz, mas usa outras. É admiravelmente cruel o modo como a boca trata os fonemas. Então não pode falar, questão de estilo. Não obstante, fala. Uma sílaba engendra a próxima, e lá vêm as palavras. As primeiras não parecem tão ruins. Mas logo parecem, sim, são terríveis, pensando bem. Seguem-se outras e os cadáveres das frases se deixam colidir em pleno ar. É até bonito, se esforçando.

Não que se possa entender. Por quê? Gagueja e tem a língua presa. Não, foi cortada. Quando era muito pequeno ainda. Reaprendeu a dizer com um graveto amarrado no toco do músculo, o que lhe causa dores crônicas no céu da boca. Nada de que se aperceba, uma vez que é estúpido. E quem sabe a estupidez seja uma dádiva, em algum lugar, em certo sentido (…), mas não no caso dele. Porque ele sabe ser estúpido. Inúmeras noites passadas em lamentações idiotas. Não chega a descobrir nada, nem quer saber por quê.

Um problema em cima do outro. Mais um então, que dos dentes nem se fala. Sorriso de máquina de escrever. O graveto contra o osso produz estalar quase metálico. Muita coisa decorre disso. Mais ainda do resto.

Por exemplo as mãos. Não seriam feias não fossem desproporcionais aos braços de macaco. Assim parecem frutos de carne brotando do topo de um tronco. Não se mexem. Não pegam nada. Seria melhor não tê-las, pensa às vezes. No mais dos dias, dá-se por contente esquecendo as mãos. Mas não por muito tempo. No lugar delas desejaria amarrar outras coisas, mas não o faz por respeito à mãe, que gosta de dar e tomar a bênção com um beijinho sobre a epiderme.

A voz ainda não foi descrita. Seria melhor não tê-la, pensa às vezes. Pois a voz que tem é apenas um paradigma a superar. Afeta gravidade, não está bom, afeta graça, não está bom, afeta ingenuidade e soa falso, afeta afetação e soa genuíno, afeta bondade e soa mau, afeta o canto e a gente tem a impressão de que vai explodir, afeta afeto e só dá pra ouvir catarro, afeta isso, afeta aquilo… É patético. No sentido piedoso. 

Ele não acredita em Deus.

Óculos de aros grossos ampliam os olhos que se refletem nas lentes que ampliam a reflexão que projeta numa camada interior do vidro uma imagem em ponta-cabeça dos próprios olhos que apesar de tudo são azuis. Os olhos ampliados e os olhos um pouco menores inscritos temporariamente no vidro se sobrepõem translúcidos, o olho de trás quase desaparece mas não chega a tanto, pisca pra você.

O resto dele é mais ou menos normal. Até que o pé é bonito. Mais bonito que o seu. Isso pra despertar simpatia. Até que ele é simpático.

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