quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

54. Como me livrei de mais um súcubo

Hoje à tarde uma garota apareceu no portão aqui de casa. Eu estava jogando ovos para o alto e apanhando eles com a outra mão, tentando não quebrá-los, esperando que a clara e a gema, ao final do exercício, tivessem se tornado uma única coisa que eu pudesse chamar de gara ou clema e cozinhar ou fritar para comer no jantar. A garota no portão fazia cosplay de um personagem de algum desenho animado ou seriado que eu não conheço. Queria o meu dinheiro para comprar cigarros ou cerveja ou alguma coisa assim, que decerto levaria para o parque a fim de fazer um piquenique noturno com os amigos. Reparei bem nela. Fiz questão. O que me chamou a atenção não foi o vestido nem o cetro, nem as orelhas de raposa costuradas a uma tiara de plástico, nem o nariz afilado nem os olhos verde-esmeralda que piscavam numa frequência de mais ou menos sessenta hertz; nem mesmo os cabelos naturalmente loiros descoloridos para atingir um loiro desbotado, lavado mesmo, por baixo dos quais uma cabeça pequena meneava denotando certa insegurança erótica própria à idade que a garota gostaria de aparentar ter; e nem a boca farta, vermelha, me pegou de jeito, embora tenha causado uma fagulha, rendido um pouco a minha alma e a acossado contra a parede de costas. Não lembro, perdão, o que foi que mais me chamou atenção nela.
       Convidei-a a entrar. Ela entrou. Entramos.
       Sentamo-nos no sofá. Conversamos sobre diversos assuntos, ex. o clima e as pessoas e o que as pessoas faziam ou como reagiam a estímulos os mais diversos quando inseridas naquele clima. Andava fazendo um tempo ameno, propício ao agir naturalmente. Ela observou que, apesar do tempo estar bom e o clima ameno e de chover só raramente sem que isso afete negativamente a humidade atmosférica, e de que isso tudo seja considerado, como eu já disse, um clima propício ao agir naturalmente, muitos amigos dela não vinham agindo tão naturalmente assim. Vide os amigos dela, que estavam esperando no parque. Nenhum deles parecia superar um nervosismo perpétuo, ela disse, um nervosismo cujas causas não podem ser facilmente identificadas nem por um observador próximo, como ela, nem por um um pouco mais distante (distanciado) ou profissional, como o psiquiatra deles, que era, aliás, também o dela. Lancei uma tese: a de que o nervosismo dos amigos dela se dava pelo fato da presença dela, seminua; que eles provavelmente não se abriam com ela devido à presença dela, não se abriam com o psiquiatra devido à presença dele, mas que, deixados sozinhos no parque, os amigos dela deviam estar se abrindo uns aos outros feito doidos, e quando ela chegasse, se já não tivessem ido embora, estariam tão exaustos de se abrir que teriam que desmaiar em vez de enrubescer e morrer caso fosse caso de desmaiar. Ela acompanhou o raciocínio enquanto bebia vinho branco a goles enormes. Era de se crer que estava bem misturado com água. Ao cabo de quinze minutos ela estava bêbada, e eu também.
       Coloquei a minha mão direita na coxa direita dela. Era o mais indicado a fazer, porquanto estávamos sentados no sofá, eu de pernas cruzadas à esquerda dela, que encolhia as dela em posição de lótus. Se tivesse tentado colocar a mão esquerda na perna esquerda, teria acabado trançando os braços e estragando tudo, eu me conheço. Do modo como estávamos, além de nos tocarmos carne com carne, logramos sobrepor linho a látex, o meu antebraço cruzado rente ao tronco dela, acariciando gentilmente a barriga. Logo ela montou no meu colo e me enlaçou com os braços.
       O telefone tocou. Corri para atender e consegui atender antes que parasse de tocar, como geralmente não logro fazer ou porque não quero, ou porque nada na vida me parece tão urgente quanto quando se é interrompido…
       Alô! Diz uma voz, alô! Quem fala deste lado sou eu, do outro a empresa Trabalhando Firme Em Nossas Vidas Para Torná-Las Melhores Através da Química. Mas as nossas vidas, no geral, nunca foram tão boas. Recentemente tenho dormido bastante; terminei a minha dissertação sobre recintos fechados, aqueles que têm a opção de se abrir ao menor sinal de um toque que se aproxima no tempo, e tenho, ou tinha, modos de fazer dinheiro em vista, apesar de que agora me escapam. Durante a redação aprendi, por meio de um texto a que cheguei após clicar num hyperlink, a não empregar palavras como hypertexto quando for possível descrever exaustivamente os conceitos que encerram, ocupando deste modo mais de uma página com informações que ao leigo se revelarão muito úteis e afagando ao mesmo tempo o ego do especialista, que pode pular quantas páginas julgar necessário e terminar a leitura em menos de cinco minutos. Resumir-se-á assim a sentença final do especialista em uma única longuíssima frase abarrotada de conceitos de cujos conflitos se dirá, dependendo da habilidade interpretativa do leitor, que foram muito bem resolvidos mediante o emprego das preposições adequadas, ou, inversamente, que não foram, não, e o trabalho todo não faz o menor sentido. A mim pouco importa, pois decorrem desse trabalho os modos de fazer dinheiro supramencionados, os quais esqueci ou estou em vias de esquecer.
       Quem fala? Diz a voz. Quem fala digo eu! Pois sou desconfiado. A voz cala por alguns instantes e depois retoma; eu corto: gostaria de falar com quem? Com a garota seminua no meu sofá, eu penso. Pois não, aqui é o Diego, de Minas Gerais, diz a voz, e gostaríamos de conversar sobre o estado de bancarrota em que o senhor vive e sobre essa menina que acaba de aparecer fazendo cosplay no seu portão e que se encontra agora no seu sofá. Pois não, eu digo, sou todo ouvidos. Então ele começa a falar em jargão empresarial, porém num tom de admoestação que me faz pensar em chamas e perdição. A voz vai diminuindo, provavelmente culpa da telefônica à qual me subscrevo; antes de cair, rogo que me repasse sucintamente aquilo que ela tem a repassar; ao que ele grita apenas: Cuidado!!!
       E foi assim que me livrei de mais um súcubo.

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