segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

51. Senhor da Ilha

Fui com amigos a uma ilha semideserta a fim de passar a virada do ano. Na data apropriada, ceamos e fomos passear pela orla. Atravessamos o canal pela ponte, depois da qual adentramos uma área encoberta por forte neblina.
       Não sei bem em que momento me perdi do grupo. Andei até uma escarpa íngreme, a luz fraca do celular acesa para evitar o contato dos pés com galhos, conchas e corpos inertes de águas-vivas, e me reclinei contra um rochedo. Precisava retomar o fôlego perdido às custas de dez anos de tabagismo. Eu ainda segurava a minha taça de champanhe. Sentia-me levemente embriagado, um pouco eufórico. Deitei-me na areia e caí no sono contemplando as estrelas.
       Acordei com o sol alto e o cheiro pungente de enxofre, a cabeça repousada sobre um travesseiro de saco de batatas cheio de penas. Não havia mais encosta nem rochedo à vista.
       Levantei-me e me coloquei a procurar traços do caminho que percorrera na noite anterior, sem sucesso. Ao cabo de três horas de caminhada ao longo da linha da maré, não divisei nenhum sinal de civilização.
       Refiz os passos da caminhada até voltar a encontrar o travesseiro. A taça de champanhe continuava ali onde a deixara, mas agora estava cheia de um frisante deliciosamente fresco. Ao lado dela repousava um prato de carré de porco preparado à moda da Westphalia e um maço fechado dos cigarros de minha preferência. Comi com apetite, esvaziei a taça com sofreguidão, fumei dois cigarros para digerir e me coloquei a pensar. Tentei pensar com afinco. Mas me sentia tão cheio que…
       Durante os dias seguintes consolidei uma rotina. Eu passei a dar caminhadas mais curtas e com maior frequência. Sempre que voltava encontrava o frisante fresco, um maço de cigarros intacto, um prato delicioso fumegante sob a sombra de uma palmeira. Era estranho, eu pensava, mas nem tanto. Não me preocupava tanto com a minha situação, visto que ela não era propriamente crítica. Eu me deixava levar pela maré.
       Logo passei a receber outros mimos: aparelhos eletrônicos de marcas diversas, jogos solitários de tabuleiro, fotos de gente rica retiradas de revistas dos anos recentes, cartas de amor de desconhecidos dirigidas a desconhecidos, animais de estimação, capacetes, aparelhos radioamadores estragados, miniaturas de pontos turísticos os mais diversos, charutos cubanos, peças de mobília em madeira maciça, ativos sob a forma de bônus de baixo risco e debêntures, quilos de debêntures, quilotoneladas de debêntures. O rol não é exaustivo.
       Alguns dos aparelhos eletrônicos que eu recebia possibilitavam o contato com o mundo por meio de uma poderosa conexão a uma rede móvel. Eu podia pedir socorro, se assim quisesse. Podia ativar o GPS, como fiz mais de uma vez, a fim de descobrir a minha localização exata, cambiante como a posição das estrelas. Podia escrever para a minha família dando notícias do que se dera e pedindo que viessem me resgatar. Ou então apenas dizer que estava bem, que não se preocupassem comigo.
       Com efeito, eu estava bem. Engordara vinte quilos e era muito feliz com os meus sete gatos, quinze caranguejos, dois cavalos, as minhas nove espécies diferentes de moluscos e a minha incontável variedade de plantas exóticas em potes ornamentais.
       No entanto, quando me conectava à internet, procurava me restringir à interação com os meus amigos — aqueles com quem viera para a ilha e outros, provenientes de todos os lugares do mundo. Jamais por meio de palavras, bem entendido. Clicava aqui, sorria ali, postava uma piada em alguma rede social. Era toda a interação de que eu precisava. Fechava o laptop, travava o tablet, colocava o celular em modo offline e procedia à próxima caminhada. Ao voltar, deparava-me com um aparelho blu-ray (gravador integrado) ou um novo par de chinelos.
       As surpresas das voltas das caminhadas me agradavam sobremaneira. Puro excedente de felicidade, assim era a minha vida então. Na teoria dos jogos, eu ganhava sempre. Eu sorria, agora à sombra de um guarda-sol de seda italiana. Negociava títulos da bolsa ou permitia que meu corretor, um taiwanês com quem mantinha contato estritamente via formulários intuitivos do site de sua empresa, negociasse os meus títulos por mim. Os meus lucros eram incríveis. Não demorei muito a acumular um império baseado em empreendimentos futuros. Abria o capital e o dinheiro escorria para dentro. Vendia as empresas para pessoas de bem, jovens bem relacionados e velhos empresários que as afundavam num piscar de olhos. Só a minha mão era capaz de mover a roda.
       Encomendei aparelhos de academia para voltar à velha forma. Encomendei todo o material necessário para construir uma casa e forneci o salário de 300 pessoas. Colocando-os para trabalhar noite e dia em turnos alternados, a minha nova residência ficou pronta em um mês. Encomendei suprimentos adicionais de importados, pois o fluxo básico regular da ilha já não atendia minhas necessidades. Os entregadores, pedreiros e mestres de obra seguiam à risca as instruções previamente combinadas. Eu os observava ao longe, do topo de uma montanha, e me escondia toda vez que alguém olhava para trás.
       Durante esse tempo, sentia saudades da minha antiga vida? Preocupava-me com os juros que o destino certamente não tardaria a vir cobrar? Com a origem do meu capital inicial?
       Não, não e não.
       E foi assim que eu me tornei o Senhor da Ilha.

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