terça-feira, 26 de junho de 2012

34. Pfutz

é a representação bidimensional, talhada em papelão e tingida em cores vivas, de um ser humano aprisionado numa esfera maciça de vidro. Não come, dorme, ama ou sonha; apenas fica em pé, a maior parte do tempo, absorto pela massa dura do objeto que repousa sobre quatro apoiadores de silicone fixados à superfície vítrea de um tampo de mesa. Os pés dessa mesa são de madeira em pátina branca, de modo que Pfutz é a única coisa colorida desta imagem construída a duras penas.
       Quando não está em pé, estático, Pfutz rola. Dificilmente é colocado de volta sobre o apoiador em posição horizontal em relação ao tampo da mesa. De ponta-cabeça, sim, é possível. Já passou dias assim, o que pareceu uma heresia ao dono da mesa, que nutre por ele ou pelo objeto de que ele faz parte uma afeição profunda, cujas origens nos permanecerão misteriosas.
       As cores em que Pfutz está pintado são: o roxo, o amarelo e o azul turquesa. A cabeça é roxa devido à falta de ar; a camisa é amarela por nacionalismo; as calças são azul turquesa por força de circunstâncias mais ou menos alheias à vontade do seu criador. Antes de ter início a confecção de Pfutz, havia muitas outras opções de cores para as calças; mas durante o processo, a criança ficou curiosa e comeu todas elas, uma por uma, direto da bisnaga, pelo que foi levada ao hospital com sintomas de intoxicação alimentar. Quando deu por si, já estava em casa. Via e andava torto. Não se perguntava o que tinha acontecido. Só sentia dentro de si um vazio que, mais experiente que antes, preferiu preencher com leite e bolachas. A vida correu. Meses depois da intoxicação, a professora lhe perguntou por onde andava Pfutz. O filho do dono da mesa não soube o que responder. Procurou por tudo, sem encontrar; foi dar com o pedaço de papelão todo umedecido no bolso do macacão azul turquesa que não tornara a usar até então só mais pro fim do semestre, daí a cor das calças de Pfutz.
       Em seguida ele foi entregue à professora, que tratou de o colocar na pilha dos bonecos de papelão confeccionados pelas crianças ao longo do ano. Próximo à época do natal, Pfutz e seus amigos foram enviados via pessoal da administração ao vidraceiro da quadra seguinte ao colégio. Lá um homem de barba grisalha por fazer aprisionou todos eles nas esferas de vidro. Foram então encaminhados por correio aos pais das crianças, que os receberam na antevéspera do natal. Logo que viram o pacote com um selo estampado por uma miniatura em cores do famoso retrato a óleo de Marcelino Champagnat, os pais entenderam por que é que estavam recebendo aquilo aquela hora aquele dia. Sem, no entanto, compreender a crueldade inerente ao Sistema.
       Não mais misteriosas, portanto, as origens da afeição do dono da mesa pelo objeto de que Pfutz é parte. Tanto menos se considerarmos a situação de quase-morte por que passou o filho do dono da mesa. Quase-morte na imaginação do pai dele, pelo menos.
       É o pai o ser humano representado ali dentro, preso ou simplesmente paralisado pela massa inamovível da esfera de vidro. Emocionado, ele a toma com a mão esquerda enquanto leva a caneca de café forte aos lábios com a direita. Olha para Pfutz e pensa em seu filho. Uma lágrima é expelida pela glândula lacrimal correspondente à fossa lacrimal da cavidade ocular direita do dono da mesa em que Pfutz costuma repousar. Como sempre, Pfutz está roxo. É então cuidadosamente recolocado sobre os apoiadores de silicone.

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