quinta-feira, 14 de junho de 2012

33. Visões do Grande Autor

O Grande Autor vai à feira, onde é reconhecido por aproximadamente um quarto das Pessoas Comuns. A partir da entrada mais ao norte, percorre o território todo, detendo-se em cada uma das barracas para apreciar a mercadoria. O seu olhar é perscrutador. O seu pensamento trabalha. A sua boca se move de quando em quando: “Excelentes batatas!” Ouvimo-lo dizer; ou então: “Deploráveis peças de arte com areia!” As Pessoas Comuns aprovam esses veredictos, ou pelo menos consentem silenciosamente. Ao cabo de meia hora, já no caminho de casa, a Família inteira concorda: “Excelentes batatas! Deploráveis peças de arte com areia!”
       As únicas peças de arte com areia que o Grande Autor aprova são os trípticos.
       O seu cabelo toca os ombros. É talhado no formato de um penico e seus fios compõem uma superfície lisa de cor clara, castanho puxando para o loiro. Os reflexos do sol nesse cabelo fazem pensar em madeira de jequitibá. A franja bem comprida acaricia e encobre boa parte das sobrancelhas. Estas conferem ao rosto um ar de tristeza. Olheiras grandes demais englobam os olhos azuis grandes demais. O nariz fino desce até quase tocar a boca, que não passa de um risco rosado conectando as bochechas. Isso tudo o observador perceberá se chegar bem perto, e terá a impressão de estar lidando não apenas com um Grande Autor, mas talvez—quem sabe?—com um Grande Homem, um Homem À Moda Antiga.
       Afastando-se, no entanto, a coisa mudará de figura. A cabeça imponente do autor revelar-se-á apenas grande. O capacete de cabelo, desproporcional ao talhe do corpo. O corpo mirrado porém pançudo escondido sob roupas de cores burguesas (“Liberdade, Igualdade, Fraternidade!”). Tendo olhado para trás ao se afastar, o observador reformará a sua impressão inicial e dirá algo como: “Eu tinha mesmo reparado que ele fala como um mongoloide.”
       Não que não fale. Uma das particularidades do Grande Autor é a sua grandiloquência. Isso não ficaria tão mal se não tivesse a língua presa. “Effelenteff batataff!” “Deploráveiff peffaff de arte com areia!”
       Ele se consulta semanalmente com a Dra. Cris, fonoaudióloga. A Dra. Cris está cansada dele. “Você não precisa falar assim,” ela diz ao término das sessões, “você só fala assim porque quer.” Secretamente, a Dra. Cris acredita que o Grande Autor está apaixonado por ela. Pequenos sinais lhe dão a entender. Referências veladas em contos esparsos. O seu nome apropriado. A sua persona adaptada ao caráter redondo do personagem de um romance. No entanto, o Grande Autor não sabe que a Dra. Cris se chama assim. Crê ter tirado o nome do éter onde busca inspiração para escrever todas as suas histórias. Secretamente, ele só insiste em falar com a língua presa porque acha charmoso.
       Além da língua presa, há o problema do ponto e vírgula. Ele o pronuncia mediante longo silêncio. Nos lugares errados. Chega a separar sujeito e predicado. Alto lá; lá vem metade de um complemento. Interrompe mesmo nomes compostos, impingindo-lhes tão execrável adorno. Não contente, interrompe os interlocutores com o dedo em riste, consentindo que continuem após ter se dado por satisfeito segundo critérios menos arbitrários que pessoais e insondáveis. 
       Mencione-se ainda que, quando ele fala em itálico, é evidente que está falando em itálico.

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