segunda-feira, 22 de outubro de 2012

46. Do ponto de vista de um velho sarraceno

Estou interessado no casal, embora me esqueça deles. Não me esqueci de tudo. Há complicações. Eles vieram de mãos dadas, todas as quatro. Não tinham nenhum traço de descontentamento impresso no rosto, em nenhum dos dois rostos, nem sorrisos que lhes desfigurasse a figura com rugas sombrias. Fazia calor. Fazia sol. Possível que carregassem sacolas. Estavam vestidos para o verão, queriam se divertir. O sol e outras estrelas e uns helicópteros de empresas privadas singravam pela abóbada celeste. Era dia, alternadamente noite. Ela trabalhava em onze agências espalhadas pelo território nacional, mas com a ajuda dos helicópteros sempre chegava na hora. Ele fazia música com batedeiras e pequenos objetos e até animais de carapaças de cores variadas. Aí já viu, a história se complica… Vinham pelo caminho que conduzia para fora do bosque de reflorestamento ao redor do parque com placas em memória às primeiras levas de imigrantes ucranianos. Eu via eles a certa distância, todas as quatro mãos dadas, os braços de um cruzados, sobrepostos, entrelaçados, alternadamente aos do outro. Às vezes davam de querer retificar a posição, ficar com os quatro braços estendidos, formando o que poderia ser um quadrilátero se a anatomia humana fosse mais parecida com a geometria euclidiana. A única maneira de alcançarem tal efeito era a seguinte. Um deles, alternadamente o outro, sem largar as mãos do parceiro, girava cento e oitenta graus no mesmo lugar em que estava, pois tinham parado de andar. Isto é, sobre o próprio eixo. Para tanto era necessário passar por baixo do próprio braço, o direito ou o esquerdo. De modo que o que girava terminava de costas para o parceiro que necessariamente descruzava os braços. Era bonito de ver, não era bonito mas era divertido, não era divertido mas é um jeito válido de ver a coisa. No entanto essa posição nunca durava muito tempo, pois logo voltavam a andar e um ou outro deles tropeçava. Então era o mesmo movimento, em sentido contrário, e os braços cruzados de um alternadamente aos do outro outra vez. Os helicópteros pareciam reproduzir esse movimento, e com tamanha naturalidade, com tal sincronia, que cheguei a me perguntar se não seriam eles extensões dos membros do casal, membros estes, lembremos, atados uns aos outros pelo entrelaçamento de dedos ou então, como é o caso dos membros inferiores (pernas), esmagados contra o chão pela força da gravidade, uma e alternadamente a outra, em passo seguro apesar de tudo. O propósito deles, pois deviam ter um propósito, eu não sei qual era. Jamais experimentara daquela espécie de alegria que parece exsudar das pessoas quando, num dia ou numa noite de calor infernal, entrelaçam-se os dedos das mãos e sobrepõem-se os braços e vai-se tropeçando ao longo do caminho em direção a um ponto em que cumprirão um propósito ou terão cumprido um propósito, caso o objetivo fosse apenas chegar. Disse que jamais experimentei essa alegria. Estava mentindo. Uma vez, quando andava com o meu gato, numa coleira comprida, um gato lindo, quarenta quilos… mas aí já viu. A história se complica. É sobre o casal que estamos falando. Este casal que vinha e que eu vi e que já esqueci. Eles tinham cabelos, é claro, loiros, alternadamente escuros como a noite, dependia muito. À sombra eram escuros, ao sol claros. À penumbra eram gris, tais como os de um velhote sarraceno. Ao crepúsculo brilhavam como os vampiros do filme. Objetivamente, nada de errado nisso. Eu já disse que não carregavam sacolas. Traziam, sim, mochilas às costas, uma cada, uma vermelha, outra branca. Transferiam raramente as mochilas das costas de um para as costas do outro sem largar das mãos, as quatro de dedos bem atados, mediante pequenas variações do movimento já descrito. Pareciam experientes nisso como uma mulher acostumada a tirar o sutiã sem tirar a blusa. Incontestável, isso. Passaram por arbustos e tropeçaram. Não chegaram a cair, embora tenham provavelmente vislumbrado a possibilidade durante aquele meio segundo desestabilizados. Gosto deles principalmente porque, em se tratando de um casal, é possível trocar o singular pelo plural mais ou menos à vontade. Gosto de falar deles. Mas não tenho mais nada a dizer sobre eles. De fato, nem me lembro de mais nada, a não ser das complicações envolvidas no árduo caminhar de mãos dadas deles. De qualquer jeito, é melhor parar.

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