quinta-feira, 4 de outubro de 2012

45. Conselhos

Para quem apenas diante da chuva ou de outro abismo qualquer da linguagem rabisca em vermelho ou azul ou preto ou apenas sublinha qualquer coisa que já estava ali escrita e aproveita para retraçar as letras mais ou menos apagadas da máquina que não liga para a impressão. E retraça e uma e outra vez e de novo, quem diante do abismo da linguagem ou da chuva sob uma marquise gotejando nele rabisca um bloco de notas. Este é um conselho para o nosso amigo que anda de marquise em marquise, de vez em quando acossado pelos carros, de luz em luz feito mariposa—faz frio e a cidade normalmente feia se acende e brilha hoje, reflete todas as luzes uma e outra vez e causa espanto para quem vê tudo tanto de cima, em perspectiva, quanto do chão, relatos do grau zero da plebe, coisa bem marginal, o povo se comportando quase estereotipicamente como o povo—e ele abrindo espaço a encontrões e de quando em quando realiza com destreza um breve deslizar que é como para cortar caminho sobre as pedras úmidas e centenárias do pavimento. Para quem como ele, imitando uma imitação de uma imitação, deus tenha piedade, diante dos abismos da linguagem e descrente de qualquer espécie de espírito malévolo que possa vir tomar posse dos seus membros enquanto dorme quanto mais a esperar o ônibus, leva a mão direita ao bolso direito da calça, tira de lá um maço de cigarros iguais uns aos outros e cada um igual a centenas de outros contabilizáveis se assim se pretendesse ao redor num raio de um quilômetro, e pensa Quantos fumantes encontraria?, e pensa Quantos narizes encontraria?, e pensa que para contabilizar os braços e pernas bastaria, com a licença dos mane/pernetas, dobrar o número dos narizes e esquecendo as dificuldades implicadas em lidar com coisas grandes como números e pessoas e os abismos da linguagem anotar no bloco de notas logo abaixo de outras informações pertinentes: o tempo que leva de uma estação à próxima separado por uma linha vertical do tempo que levou do mesmo ponto ao outro mesmo ponto outro dia se for possível falar em pontos iguais separados pelo tempo e o coeficiente da razão entre esses números e o que ele significa; uma descrição pormenorizada do sol seguida por uma linha que hoje mesmo ele não entende nem faz questão; um rabisco de olhos de gato mas que também pode ser uma pomba ou uma andorinha; encimando a página uma espiral laboriosamente retraçada uma e outra vez como que apenas um lembrete dos abismos, de que é melhor nem falar. Dentro do bloco enquanto ele desce do ônibus e para na frente de um bar pensando se entra ou não as anotações de receitas entreouvidas/cortadas, misturar um quilo de farinha a uma dúzia de ovos e no fim retirar do forno preaquecido uma colher das grandes de margarina, subir a ladeira até a mercearia, furar o olho lá em cima e temperar a gosto; e a fome crescendo, e os cheiros vindo. Procurar no bloco enquanto ele adquire peso insuportável por uma informação específica, que personalidade histórica fez o quê quando, em que lugar, e acima de tudo, com todas as exclamações em vez das interrogações talvez mais acertadas, o que é melhor nunca se perguntar—Por quê!!!! Seguido de algumas linhas ou páginas em branco, reservadas para a explicação que algum dia há de passar por cima dele depressa e com toda a força, buzina estourando e faróis acesos, que há de passar por cima dele mas é para matar e não esclarecer, promessa de verdade como o impacto de um ônibus. Esclarecer ou esclarecer-se quanto ao propósito daquilo mesmo que ele está fazendo agora—o que quer que seja isso, deve estar anotado. Sentar-se ele ou sentar-me eu sobre a banqueta diante da mesa em cima do chão ao lado da parede, sob a luz baça, através do tempo, esperando pelo garçom que circula por entre todo mundo (é casa cheia). Não, tudo falso—o melhor é não estar lá, nem eu nem ele nem ninguém, a casa vazia que não há e os modos de dizê-lo, e dizê-lo para quê se estivesse, imitar e repetir para quê se existe, com todas as pessoas dentro, e desconfiar que elas são fantasmas, espectros de luz e energia, fantasmas de fumaça e calor e alguma materialidade pulsante não obstante fantasmas, manequins com palavras dentro palavras coladas fora, dizeres e palpites por todo lugar. E olhar (se tivesse olhos) para baixo, para o bloco de notas, e constatar a verdade incontestável que é o que está escrito, e gostar disso, e ao mesmo tempo não gostar disso porque não há parâmetro real para comparar. E o pior, retraçar outra vez e mais outra a espiral até que as linhas tão grossas preencham um círculo não perfeito mas quase, e ler na página anterior as instruções executáveis ou auto-executáveis para o dia seguinte, que é hoje, sob o título de Conselhos, dedicatória a quem apenas diante da chuva ou de outro abismo qualquer da linguagem rabisca em vermelho ou azul ou preto ou apenas sublinha etc., em cuja profecia nem sequer se pensou apesar de se ter cumprido, a profecia do dia, as instruções, o germe do que anotar no mesmo bloco de notas pensando em nada e na verdade já vistos e revistos o dia seguinte e o próximo e mais todos os outros de que é cômodo dizer que vêm depois.

Nenhum comentário:

Postar um comentário