quarta-feira, 19 de setembro de 2012

44. Como me tornei escritor

1. Com Muita Leitura

Sou um bom leitor desde pequeno. Já durante a primeira infância, no casarão onde morava com minha família, além de outras quatro, meu pai me trazia livros novos da capital hebdomadariamente. Isso para não falar da biblioteca iniciada por meu bisavô—um cômodo magnífico, de pé direito de três metros e vinte, onde se reúne a maior parte do conhecimento acumulado pela humanidade. Foi lá que tomei gosto pela solidão. Aprendi a ler sozinho, com gibis, aos dois anos; aos seis já digeria as obras completas de Dostoievski, aos oito retornara aos românticos… Foi uma infância produtiva. Assim que perceberam minha vocação, meus pais passaram a me amarrar a uma poltrona da biblioteca, de onde só me deixavam sair ao fim do dia, quando as outras crianças já tinham entrado para jantar. “Para proteger dos germes,” dizia a minha mãe, “que habitam as reentrâncias dessas crianças ranhentas”. No entretempo, passavam-me os livros. Que nem eram necessariamente livros, na verdade—qualquer impresso valia: almanaques, clippings de jornais, bulas de remédio… Se minha mãe conseguiu me proteger dos germes, eu tenho minhas dúvidas; mas parece que alguma coisa saiu daí, como que por geração espontânea.
       Hoje em dia eu não tenho o mesmo fôlego. Leio entre quatro e cinco livros por dia. Romances de tamanho médio, nada muito além do comum. Prefiro o realismo involuntário, que é a única corrente literária ingênua e até certo ponto pura que já existiu. Quando não estou lendo nem escrevendo, escuto música ou saio para dar uma volta com meus amigos escritores. Nós falamos sobre literatura, sobre as últimas novidades, sobre quem está vendendo agora e quem já terminou a travessia do rio que lhe cabia. O sucesso e seu anverso, o esquecimento, são os temas recorrentes de nossas conversas.


2. Com a Participação da Família

Chegou uma época em que eu pensava que a literatura não me renderia nada, que mais valeria começar a acumular capital para investir em uma pequena empresa, qualquer coisa nessa linha. E, com efeito, talvez, se eu tivesse feito isso a essa época, se tivesse começado a acumular para investir no futuro, é possível que hoje fosse rico. Pensando bem, é provável mesmo que fosse um dos homens mais ricos da América Latina. Eu me inclinava mais a ser rico do que a ser qualquer outro tipo de artista porque não tinha nenhum jeito com trabalhos manuais. Não podia trabalhar com nada que exigisse movimentos de qualquer espécie, exceto pelos de espírito. E quem sabe se a riqueza não é o equivalente material do refinamento de espírito inato, daquela agudez própria aos escritores? Tolice, decerto; no entanto, foi essa a crise que me viu alcançar meus dez anos.
       É que meus esforços para me tornar um escritor, embora bem sucedidos até então, tendo culminado no lançamento de três coletâneas de histórias infanto-juvenis e um romance policial, não tinham feito senão alçar meu nome a uma condição de fama precária, posição que não garantiria meu futuro, com o qual eu já começava a me preocupar. Como consequência, comecei a diminuir o ritmo de minha produção. Ali onde teria deixado, antes, cem ou duzentas páginas, ao cabo de uma semana descansavam apenas cinquenta. A qualidade dos meus escritos decaiu muito também; cheguei mesmo a arquitetar um roman à clef.
       Mais uma vez, a interferência de minha família se revelou decisiva. Minha mãe me levou a um psiquiatra, que me receitou benzedrina. Algum tempo depois, eu já estava de volta à velha forma. Já meu pai, desgostoso com os meses passados em crise, não se deu por satisfeito tão facilmente. Se tivesse continuado o meu curso natural, sem desvios motivados pelo capricho, argumentava ele, estaria então escrevendo pelo menos duas vezes mais e melhor que antes. Eu dizia que estava tudo bem, que ainda era jovem, que era preciso dar tempo ao tempo; ele grunhia, insone, e em seguida se ausentava por dias a fio. Passava-os enclausurado na sua biblioteca particular, devassando os volumes manuscritos de conhecimentos pedagógicos registrados pelos meus antepassados—volumes magníficos, encapados com um tecido aveludado, as páginas de couro de carneiro, espessas, rabiscadas por penas muito finas. O meu pai procurava por uma resposta, uma alternativa factível para possibilitar o pleno desenvolvimento de seu primogênito. Não tardou a encontrar um método de estímulo muito eficaz. Certa feita, chamou-me ao seu escritório e, entregando-me a chave de casa, disse:
       — Toma, é tua.
       — Ué, pai? Eu tenho esta no meu molho.
       — Ah, grande imbecil! Esta chave é mais que a chave desta casa que habitas. Entrego-lha; e agora é tua esta casa com tudo que tem dentro. Tudo que eu tenho é teu; já conversei com o Pereira — era esse o nome do nosso advogado — a respeito da transferência das propriedades. Porém, da tua parte, deves te esforçar para cumprir uma condição.
       — Qual, pai?
       — Tornar-te, até a maioridade, o maior escritor do mundo.
       Aceitei o desafio com o coração leve. Ora, muito bem—estava feito! Não teria mais que me preocupar com dinheiro; bastaria me consagrar a fazer o que, de resto, já vinha fazendo desde a mais tenra idade. Tudo daria certo.
       As propriedades que hoje constam no meu nome, portanto, devo-as a meu pai, assim como minha posição privilegiada no cenário da literatura universal.


3. Com o Investimento do Estado

Dito e feito, atingi a maioridade mais ou menos à mesma época que atingi a posição de maior escritor do mundo. Cumpre fazer lembrar a ressalva de alguns poucos críticos, os quais, imbuídos do mal do relativismo—o mal deste século que se inicia—, listam, no mesmo papel em que ousam inscrever o meu nome, o de outros três ou quatro meus contemporâneos. São sempre os mesmos três ou quatro, o que, em se tratando de cânones, poderia ser indicativo de certa propriedade da escolha, a constância que aponta para a justificação—quem sabe, pergunta-se o leitor, não são mesmo bons autores, ou pelo menos quase tão bons quanto eu? Ressalva feita, devo acrescentar apenas que já gastei meu tempo lendo as obras de todos os quatro, sobre os quais, aliás, escrevi as biografias que recentemente se esgotaram de todas as livrarias nacionais e estrangeiras; e que, apesar de não lhes faltar certo élan, bem… Digamos apenas que separar o joio do trigo é uma arte cuja maestria depende, além de conhecimento da técnica, de um grande domínio do espírito.
       Fazer literatura no Brasil é participar da política pública. De que vale ser o melhor escritor do mundo se não se é publicamente aclamado? Direto, ao vivo, em tempo real? Isso me faltava, e isso o Estado me forneceu. As feiras de livros que se proliferam pelo país, muito mais raras à época de meus primeiros passos, tiveram em mim um de seus primeiros participantes fixos. Não havia debate em que eu não tomasse parte, mesa redonda em que minha opinião não fosse solicitada. Proferi muitas grandes ideias, dentre ideias rasas, dos demais palestrantes, e outras mais rasas ainda, do público, uma massa de leitores em eterna formação; mas o que importava era estar lá, frente a frente com o povo, tomado pela emoção ou pelo enfado, a personificação mesma do incentivo à cultura. Os prêmios literários foram igualmente importantes. Sobre isso já falei o bastante em meu best-seller Vendendo o Jogo, recomendado a todos os jovens escritores. Para os amantes da tecnologia, há uma versão para tablets no meu site. Os editais, os coquetéis, os apadrinhamentos etc., tudo isso entra aqui etc.

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