domingo, 2 de setembro de 2012

39. Da morte de um atleta

Elaine chega em casa tirando o casaco e já bota água para ferver, fazer um chá. Levanta o gato da pia e leva ele para o sofá. Tira o gato do sofá, levanta-se, entra no banheiro. Poucos passos do sofá ao banheiro. Gasta cinco minutos analisando o próprio rosto. No rosto ela encontra espinhas que não estão lá e que numa análise mais detida desaparecem. O rosto belo ela acha inchado e numa análise mais detida desaparece. Estranho que o rosto da gente desapareça assim. Como o de pessoas que morrem. Mas tudo bem. O aspirador ela coloca no canto e junta alguns objetos do chão enquanto procura por um colar com pingente azul de vidro de Murano. O colar está enrolado no meu pulso esquerdo enquanto digito estas linhas. Eu não pretendo devolver.
       Ela se lembra de que deixou a água fervendo. Coloca o sachê de chá numa xícara e tira o gato de dentro da pia antes de pegar a chaleira. Mas no caminho esquece de pegar a chaleira e vai ver a mensagem que acaba de chegar no celular. Lendo, repassa mentalmente o itinerário do dia e formula com os lábios imóveis: não vai dar. Hoje não. Tem um compromisso. Não gostaria de ter, passou a semana inteira antecipando e se torturando e finalmente chegou a hora e gostaria de ficar em casa e beber o chá e acariciar o gato até bater a vontade de fazer outra coisa, mas tem um compromisso e vai de uma vez para acabar logo com isso. Tudo bem. Ela vai.
        Sente os dedos da mão latejantes ao apertar o botão do térreo. Uma senhora abre a porta um andar abaixo só para cumprimentar e dar uma advertência pelo barulho tarde da noite. Elaine e o namorado andam passando dos limites, precisam moderar. No sétimo andar, um casal gay faz menção de entrar, mas desistem diante do elevador abarrotado.
        Mais cedo no trabalho Elaine bateu numa menina de cabelo colorido. Elaine é pugilista profissional peso pena e instrutora numa academia próxima ao prédio onde mora no centro. Ela bate em meninas profissionalmente e ensina a bater também. E gosta do que faz. O cabelo da menina em que ela bateu durante boa parte da manhã esvoaçava para um lado e para o outro e com a luz dos refletores refratada no suor que respingava para todos os lados as duas cores pareciam três, quatro—ela chegou a contar sete uma hora, como num arco-íris, se bem que os esteroides… Agora, na rua, à procura de um táxi, elas se cruzam e se cumprimentam amavelmente. Sem rancores. Sem mágoas. Nada além de um olho roxo e dores pulsantes pelo corpo.
        Sempre há taxis disponíveis no Círculo Militar. Ela anda até lá e entra em um carro mais ou menos moderno. A mão dói ao puxar a porta para bater. A mão dói depois também. Durante a viagem ouve uma história no rádio. De um jovem que praticava atletismo. Ele tinha começado cedo. Foi inspirado ou pela morte do pai, ou pelo simples medo da morte. O pai morrera do coração com trinta e um anos. Ele mal lembrava. Só sabia que, desde que descobrira que o mal do pai era genético, tinha na cabeça que ia fazer de tudo para evitar morrer da mesma causa. No caminho ele virou atleta olímpico — Atenas, 2004, participação modesta. De resto, tinha família, uma boa carreira de escritório, cachorro e mãe viva e comida na despensa e na verdade todos os contornos de uma vida satisfatória… Até que completou trinta e um anos. Daí aconteceu alguma coisa. Em rápida sucessão, ele perdeu o emprego, se livrou da mulher, abandonou os filhos, começou a beber. Ficou na sarjeta. Antes de completar trinta e dois estava morto. Parada cardíaca. Morreu no frio do inverno curitibano, embaixo do viaduto do Capanema. Engraçado, o taxista acha. Vê como é a vida. Elaine sorri em resposta.
        Desce na Rui Barbosa em plena hora do rush e segue até a autoescola. Pega uma senha e espera. Espera interminavelmente. Das três atendentes, apenas uma está disponível para conversar com os alunos já matriculados. As outras duas recebem os que ainda não se inscreveram, repassam informações, preenchem formulários e conversam entre si. Na sala de espera todo mundo assiste calado o Jornal Hoje em HD. Elaine se inquieta, pega um café de um real na máquina. Já vem adoçado; ela joga o copo cheio no lixo. Ela é chamada ao último guichê no meio do Vídeo Show, André Marques em carne, gordura e osso falando qualquer coisa sobre qualquer coisa.
        Elaine pede uma reposição de aula. A atendente digita qualquer coisa e olha para a tela do computador. Ela parece o André Marques. Ao cabo de alguns instantes a atendente assume um tom bovino para informar que o prazo inicial já passou; agora, para marcar reposição, Elaine vai ter que pagar uma taxa de cento e setenta reais.
       — Mas foi por causa da autoescola que eu passei do prazo, vocês demoraram para marcar o meu teste, depois demorou mais um mês para marcar a primeira aula, daí é lógico que eu vou perder o prazo?
       — Sim senhora Elaine, a senhora tem razão, mas eu não posso fazer nada, é o sistema, quando passa do prazo ele trava e eu não posso fazer nada…
        Elaine pede para falar com o gerente. De uma porta de fórmica surge uma loira oxigenada meio gorducha de calças justas e top branco escritorial. Ela chama Elaine a uma sala reservada para conversar.
       — Por favor, por aqui.
        Elaine argumenta. A gerente contra-argumenta. Elaine diz que aquela é a autoescola mais cara da cidade, e a pior também. A gerente nega. Alega conhecimento de causa. Ela tem a vantagem do cinismo. A mão de Elaine lateja. Começa a coçar. Podia bater na gerente se quisesse. Mas daí seria um escândalo. Um escândalo verbal pelo menos tem que ter. Elaine fala mais e mais alto. A gerente faz ela notar que elevou o tom de voz. Elaine grita que pelo menos não tem a voz fina. A gerente pede para ela repetir. Ela repete: voz fina, voz fina, voz fina. A gerente pede para falar mais baixo, vai todo mundo ouvir. Melhor que ouçam mesmo, que ninguém que está ali fora cometa o erro de se matricular nessa autoescola de merda. Enfim. Elaine sai dali vencedora: vai pagar uma taxa reduzida. Nunca mais quer voltar a ver a cara daquela gente, o que vai ser impossível, ainda vai precisar marcar o teste prático… Mas tem um certo orgulho nessa vergonha. Pelo menos sente que lutou pelo que é certo.
        O gato a espera no apartamento com um sorriso. O gato sorri para ela com o corpo inteiro. Só olhar para ele já é ganhar um carinho. O gato é a vida e a glória. Elaine deita com ele, que sobe na barriga dela e faz uma massagem de gato. Depois de um cochilo vai dar uma caminhada pelo centro, comprar algumas coisas, encontrar os amigos, beber uma cerveja.

Nenhum comentário:

Postar um comentário