terça-feira, 8 de novembro de 2011

3. Retratos de Canequinha

O nome dele é Canequinha. O homem que o representou já é outro; quem assumiu o comando da pessoa é outra pessoa, um advogado feito e tendente à gula como meio de dar cabo de si mesmo, que a vida já dura muito, a careca cresce e os pulmões arranham, a figura em nada semelhante à do jovem deputado com os óculos de aros grossos prefigurando a moda das décadas seguintes. Esse auto-impostor estuda uma representação de si mesmo numa foto de campanha e, trinta anos mais tarde, contempla-se a si mesmo contemplando-se a si mesmo conforme retratado numa fotografia de família.


O homem da fotografia intermediária já não é feliz. É uma foto colorida, mas de cores apagadas. Ele veste um terno cinzento contudo, e na verdade nada denunciaria tom algum para além do espectro do preto-e-branco se não fosse pela ponta de um lenço originalmente turquesa, aqui ciano, que traz na lapela. Enquanto tiravam aquela fotografia ele olhava para si mesmo em outra imagem, mas não parece enxergar nada, concentrado antes em ouvir o canto de um pássaro ou alguém o mandando sorrir. O piso e a parede são de concreto, talvez pertençam ao cômodo de uma casa feita às pressas, uma sala com sofá carcomido e rosário sobre a mesa, e o ângulo de incidência da luz faz pensar que há uma janela à direita do homem, fora do enquadramento.


A representação do homem indiretamente contemplado pelo homem da foto é bem estranha. Não cheguei a vê-la por meio da fotografia anterior, uma vez que o negativo a que tive acesso se encontrava desgastado demais para uma ampliação decente. Tive acesso ao seu conteúdo por meio de uma terceira fotografia, esta de caráter meramente documental, pensada para prestar contas ao partido do dinheiro para o financiamento da campanha do ex-deputado. A bem dizer, o caráter de uma fotografia nunca é meramente documental, pelo menos não nas minhas mãos.


O que se vê aqui, mais claramente que em qualquer outra das demais fotos, é um momento de surrealismo involuntário, um fotograma concebido talvez no momento exato em que Dalí sorria. Trata-se do rosto de Canequinha estampado numa caneca metálica. Ele usa óculos da moda de décadas posteriores e seu pescoço está recortado de modo que as arestas que limitam a pele se encontram num ângulo agudo, fazendo uma ponta de tora ou lança bidimensional. É uma foto de estúdio, totalmente isenta de pretensões autorais. Sente-se o cheiro de pólvora na sombra projetada pela caneca sobre uma superfície perfeitamente lisa até o ponto em que se curva suavemente para cima, retomando daí o aspecto de sonho. Uma quina começa em algum lugar, continuação da curva suave, mas sem progressão aparente, como que saindo do meio da parede.


De todo modo, a foto roga que a contemplemos de modo impessoal, o que procurei fazer aqui.

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