domingo, 13 de novembro de 2011

7. Estudo de caso

Não tinha nada para fazer, razão por que cheguei à delegacia antes da hora marcada. O delegado só olhou para mim de relance e me entregou ao carcerário. Cumprimentamo-nos, perguntei onde estava o menino e segui o carcerário por um corredor com cheiro e aparência de jaula. Fui conduzido por um segundo carcerário porta adentro de uma sala em cujo centro o menino me esperava. Me apresentei, sorri como sempre, olá, como vai, eu me chamo tal e estou aqui na qualidade de seu defensor dativo, fui designado e é meu dever fazer o meu melhor, em que posso ajudá-lo, mas no fundo o meu coração tinha parado de bater. Ele percebeu, mas devia estar acostumado com esse efeito, porque sorriu. O sorriso esmoreceu. O rosto voltou a ficar estático e relaxado e assim permaneceu pelo que me pareceu muito tempo. Eu havia dado uma olhada rápida nos formulários na noite anterior, enquanto me barbeava e assobiava uma melodia imbecil: lembrava que o menino tinha dezesseis anos, era viciado, tinha matado. A aparência de um velho maltratado, fraco, um pouco corcunda, sem a maior parte dos dentes. O cheiro dele enchia a sala. Ele me encarava e eu achei que fosse dizer alguma coisa, mas não abriu a boca. Pedi para que me contasse o que havia acontecido da forma mais detalhada possível. Com voz firme e clareza narrativa surpreendente, ele me contou o seguinte.
       Que um dia, acompanhado de uma vizinha, fumou algumas pedras e saiu vagando pelo centro. Que, por volta das cinco da tarde, ele e a vizinha viram um homem saindo de um hotel de luxo na Comendador Araújo e resolveram que iam assaltá-lo. Que estavam sem dinheiro e não carregavam nada além da roupa do corpo, um isqueiro e uma pistola de brinquedo. Eles renderam o homem com a pistola e o fizeram ir até o carro. Iam deitados no banco de trás enquanto o homem dirigia e rangia os dentes. Ele não falava muito, eles tampouco. Mandaram pegar a Rodovia da Uva e por aí seguiram até os arredores de Colombo. Ordenaram que saísse da estrada e parasse o carro num terreno baldio aos fundos de um motel. Ali eles pararam e fizeram o homem sair do carro. Mandaram o homem se ajoelhar, ele se ajoelhou. A menina, que era maior e mais forte que o meu cliente, golpeou o homem com a pistola e ele foi ao chão, ainda acordado. Então se consultaram: deviam matar o homem? Sim. Revezaram-se em dar coronhadas na cabeça dele, que ao cabo de aproximadamente quinze minutos desmaiou pela primeira vez, voltando à consciência após poucos segundos. A essa altura eles lembraram que estavam ali pelo dinheiro. Apalparam o homem, viraram o corpo de barriga para cima, apalparam mais, mas nada da carteira. A menina foi para o carro e voltou segundos depois segurando a carteira e uma chave de fenda. Cinquenta reais dentro da carteira. Ela pegou a nota e enfiou por dentro da calcinha. Passou a chave de fenda para o menino, que se empenhou em golpear o homem com o novo instrumento. O homem desfalecia e retornava a si a intervalos mais ou menos regulares. Exausto e impaciente, o menino teve a idéia de usar o cilindro do extintor de incêndio para terminar o que tinha começado. A menina foi até o carro e tentou abrir o lacre que prendia o extintor ao forro do chão, sem sucesso. O menino tentou também, com os mesmos resultados. Voltaram aonde o homem gemia e lhe chutaram até que cuspisse sangue. Mas continuava vivo. Então eles tornaram a consultar um ao outro. Matavam o homem ou iam embora? Decidiram-se novamente por matar. A menina sugeriu que o garoto enfiasse a chave de fenda na barriga do homem e o rasgasse a partir dali com um movimento brusco na direção da cabeça. O menino tentou, chegou a abrir um buraco pouco acima do umbigo, mas não teve presença de espírito para levar o procedimento a cabo: desmaiou em cima do homem, o rosto contra o peito em que o coração pulsava fraco. A menina então o ergueu pelos braços e tomou da chave de fenda. Em vez de aproveitar o buraco já aberto, cavou outro no peito do homem, que ainda grunhia. A intenção era atingir o coração, mas só conseguiu romper algumas artérias. O homem esbravejou pela primeira vez, e tentou se livrar da menina. Mas ela era pesada e ele estava fraco; não precisou fazer nada além de permanecer sentada sobre ele. O homem voltou a desfalecer. A menina saiu de cima dele e o meu cliente quis se encarregar de finalizar o latrocínio. Ele desferiu mecanicamente mais alguns golpes contra o peito do homem. Os peritos suspeitam que foi só aí que se perfuraram os pulmões. Há controvérsia sobre a causa mortis. Alguns argumentam que o homem já estava morto quando o menino saiu de cima dele, após desferir essa nova série de golpes. Essa é a tese exposta no laudo. Mas há quem sustente que, excepcionalmente resistente, o homem só podia ter sido declarado clinicamente morto após o último golpe, aplicado pela menina com a intenção de ter certeza. Aproveitando o buraco em que a caixa torácica do homem tinha se tornado, ela cravou a chave de fenda à altura do esterno e “arrodeou”. Depois disso, o menino, a menina e os peritos concordam em que o homem estava morto. Eu também. 
      Essa foi a história que o menino me contou. A versão confirmava a da menina. Os dois foram pegos dentro do carro que não sabiam dirigir, adormecidos um sobre o outro. Ao terminar a narração, ele parecia estar tão tranquilo quanto antes de começar a falar. Mas agora eu já não estava assustado. Anotei alguns pontos-chave no meu celular enquanto começava a dar forma a uma estratégia de defesa. Entreguei para ele o meu cartão e pedi que entrasse em contato se fosse preciso. Levantei-me para ir embora e ele me perguntou tranquilamente o que ia acontecer com ele. Respondi que não sabia.

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