quarta-feira, 30 de maio de 2012

32. Informe aos moradores

Teotihuacán, 18 de fevereiro de…

       Informamos por meio desta que a administração está muito contente com a situação do Palácio de Quetzalcóatl, em cujos murais ladeando a entrada as defasadas gravuras de jaguares foram substituídas por um lindo painel composto pelas crianças da Escola Experimental Texcoco.
       Informamos ainda que os moradores do Sítio Arqueológico de Teotihuacán devem tomar muito cuidado, pois semana passada a moradora Ruth de Castro, residente à Pirâmide da Lua, 34B, informou à síndica ter avistado três sujeitos de provável origem extraterrestre rondando os gramados adjacentes ao seu condomínio. Embora todos saibamos em que estado geralmente é possível encontrar a referida moradora após o horário do chá de peiote comunitário, cumpre lembrar que a frequência de detecção de "luzes estranhas" nos céus da nossa comunidade vem aumentando solidamente ao longo dos últimos séculos, sinal que sempre tem precedido um período de mortalidade acentuada, bem como desaparecimentos em série.
       Numa última nota, pede-se atentar ao fato de que o Sr. Duque Hernán Cortez, outrossim conhecido como Deus Quetzalcóatl, fica terminantemente proibido de utilizar as águas do Templo para fins de higiene pessoal, em cumprimento do disposto em orientação normativa elaborada por ordem direta de Vossa Excelência, o Imperador Montezuma.

Gratos pela compreensão,
a Administração.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

31. Som na caixa

A cabeça justaposta às de outras duas mil pessoas, todos os rostos em alta definição, passíveis de zoom e tratamento digital das cores. Dentro desta caixa os sons reverberam longamente. O calcanhar de um range algumas centenas de vezes e alguém pede que se faça silêncio, o que suscita uma infindável troca de olhares entre o público, cada um interceptando a mirada de cada outro pelo menos uma vez a cada cinco minutos.
       No centro de tudo a pianola. Um homem grisalho sentado à frente dela, imóvel, não mais quando tira do bolso um celular. Faz uma ligação para o homem posicionado na outra extremidade do palco, cujo telefone toca em vão. Ele só faz menção de atender quando o último toque termina de ecoar. Então afeta agastamento, o que dá a entender por meio de um ligeiro franzir do cenho, e com um gesto abrupto atira o aparelho ao público. O toque vai sendo absorvido pelas duas mil cabeças ao longo da próxima meia hora. Entretanto ninguém se move.
       Desnecessário mencionar os ruídos aparentemente aleatórios gerados pelos corpos. Ranger do calcanhar apenas um exemplo. Ninguém diz nada. Nem sequer se sabe se as vozes sairiam (pedidos de silêncio meros sopros africados). Tentar qualquer gesto no sentido de descobrir seria atentar à integridade do espetáculo. A própria reprimenda ao ranger dos calcanhares acaba gerando confusão. Mais reprimendas, e logo mais rangeres. Os pescoços estão tensos. Os ombros estalam. Alguém emite um bocejo surdo. O círculo vicioso só é interrompido por instantes difíceis de detectar, e mesmo estes relativos. Pois do exterior da caixa os alcançam as sombras de palavras, às vezes frases inteiras. Versam sobre comida, mormente. Mais raro o tema da doença.
       A caixa é um apartamento ou um auditório situado dentro de outra caixa maior. Os estímulos visuais proporcionados pelo espetáculo não ficam atrás dos sonoros nem em intensidade, nem em qualidade. Há muita coisa para ver lá dentro. Os olhos, por exemplo. O entreolhar coletivo supramencionado e outros olhares, carregando outros significados. Cada olhar flagrado é intimamente computado e colocado à parte, em sua respectiva caixa, para análise posterior. Além dos olhos e olhares, é possível distinguir, ao fundo do palco, um padrão semovente projetado por alguém lá de cima. Deste padrão pouca coisa se depreende. Uma delas é o espaço, o espaço não ocupado pelas imagens projetadas, que se descortina enorme aos olhos de quem quer que o abarque imediatamente depois de desviar os olhos para a pianola.
       A pianola é bem vistosa,
       Os músicos passam a produzir ruídos que fazem desacelerar o tempo. Comprimem em minutos o que a mera contemplação da pianola faria parecer dias. Intuir daí a supremacia hierárquica do ouvir em relação ao olhar um caminho silogístico perigoso. Pressupõe que tempo bom é tempo gasto. O perigo é imediatamente suplantado pela compreensão de que tentar pensar (continuar pensando) nisso seria prejudicial à apreciação da peça.