segunda-feira, 19 de março de 2012

26. Vozes

São milhares de vozes falando ao mesmo tempo, cada qual com sua clareza específica ou obscuridade específica, uma dissonância de fraseados produzida no escuro, possivelmente pelo escuro. Porquanto é impossível enxergar, a materialidade dos falantes é incerta. Isso devido a isso e outras coisas. Pode ser portanto que não falem, que não existam. No entanto o fato inegável das vozes.
       A bem dizer não são necessariamente vozes. Não é nada conclusivo. Há conceitos que se sustentam em forma abstrata na autografia (instantânea, presumida) em suporte (incerto) ou no estalar dos lábios ou de apenas um lábio que se estala sozinho. Chamaremos de voz, então, essa coisa que sugere outra e que pode ser outra.
       A interpretação das vozes depende do que se considera ser seu fim e varia de acordo com o observador e seu humor no momento da observação, possivelmente de acordo com a posição em que se encontra, sua fome, sua sensibilidade em relação à sonoridade das palavras ou sua capacidade para a contemplação de conceitos desencarnados. Duas correntes interpretativas majoritárias.
       Segundo a primeira é o fim das vozes informar e produzir, em escala sem antecedentes, qualquer coisa digna de ser produzida que possa ser produzida por vozes, pelo que as vozes (os “donos” delas) se esforçam, conscientemente ou não, decerto que não. Esforçar-se contudo inútil. À vontade de intuir daí uma impossibilidade absoluta de alcançar o resultado sobrevém um sacolejar, um soluço, depois calamos. Não há vontade que não possa ser suplantada pela vontade de ir ao banheiro.
       A segunda corrente interpretativa tende a ver nas vozes um mero instrumento para espalhar o amor por gatinhos, fomentar a criação de memes e consagrar vídeos engraçados/politizados/aleatórios do YouTube. 

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